top of page

Por que o Brasil ainda não rompeu com Israel e o que está em jogo

  • Foto do escritor: Rey Aragon
    Rey Aragon
  • há 1 dia
  • 21 min de leitura

Entre a urgência moral de isolar um Estado genocida e as engrenagens ocultas da realpolitik, o governo Lula caminha numa corda bamba: resistir sem romper, calcular sem trair os valores iluministas.


O sequestro da Flotilha Global Sumud por Israel, em águas internacionais, reacendeu no Brasil a cobrança pelo rompimento diplomático imediato. Mas por que Lula ainda não cortou relações? Este artigo mergulha no coração da disputa, do lobby sionista global à dependência tecnológica brasileira, revelando como o país equilibra valores humanistas com a estratégia fria da geopolítica. Uma análise estratégica, visceral e didática — que explica o presente e aponta os cenários do amanhã.

O novo ponto de ruptura



A madrugada de 1º de outubro de 2025 marcou uma virada objetiva no debate brasileiro sobre Israel. A Flotilha Global Sumud, composta por embarcações civis e centenas de ativistas internacionais, foi interceptada pela Marinha israelense em alto-mar enquanto navegava em direção à Faixa de Gaza. A operação incluiu abordagens violentas, uso de jatos d’água e artefatos de atordoamento, resultando na detenção forçada dos tripulantes e sua condução ao porto de Ashdod. O episódio provocou protestos imediatos e reações diplomáticas em diferentes capitais do mundo, além de intensificar a disputa jurídica sobre a legalidade de bloqueios e interdições em águas internacionais.


Entre os detidos estavam cidadãos brasileiros. O Itamaraty reagiu com nota oficial exigindo garantias à integridade física dos sequestrados, cobrando responsabilidade de Israel e reiterando a defesa da navegação em alto-mar e do direito à ajuda humanitária. O que até então era acompanhado com indignação e repúdio tornou-se uma questão direta de soberania nacional, com impacto consular e político imediato. O episódio não só expôs a escalada do conflito como trouxe o Brasil para o centro da cena de forma incontornável.


No plano internacional, a interceptação em águas fora da jurisdição israelense acendeu novo contencioso jurídico e político. Organizações humanitárias denunciaram a ação, países latino-americanos, europeus e africanos manifestaram repúdio, e associações de defesa da imprensa cobraram a liberação de jornalistas também detidos. Parlamentares estrangeiros e figuras públicas presentes na flotilha deram maior visibilidade ao caso, ampliando a pressão sobre Israel e sobre todos os Estados que ainda mantêm relações diplomáticas e comerciais com o regime de Netanyahu.


No Brasil, o episódio caiu sobre um terreno já tensionado. Desde 2023, o governo Lula assumiu posições firmes em instâncias multilaterais, denunciando crimes em Gaza e apoiando ações jurídicas internacionais, enquanto rebaixava gradualmente a relação bilateral. A detenção de brasileiros pela marinha israelense, porém, elevou o patamar da crise: já não se trata apenas de solidariedade à Palestina, mas de uma questão que atinge diretamente o Estado brasileiro. A discussão sobre a ruptura diplomática deixou de ser abstrata para se tornar concreta e imediata.


A pergunta que se impõe é clara: por que, mesmo diante de um histórico em deterioração, de medidas cautelares internacionais contra Israel e da comoção provocada pela Flotilha Sumud, o Brasil ainda não rompeu relações diplomáticas. A resposta não pode ser reduzida ao campo moral — onde já haveria razões suficientes. É no entrelaçamento entre ética e realpolitik, entre valores iluministas e engrenagens materiais de poder, que reside a explicação.


O precedente regional demonstra que a ruptura não é hipótese distante. Bolívia e Belize cortaram relações em 2023, a Colômbia em 2024. O caso brasileiro, entretanto, envolve dependências militares, tecnológicas e agrícolas, além de pressões externas e internas que tornam o cálculo mais complexo. O que está em jogo é a necessidade de compreender como o Brasil equilibra os imperativos do humanismo com a frieza estratégica da geopolítica. Esse é o ponto de partida da análise que segue.

Jornalismo estratégico e o olhar sobre a realidade objetiva



O jornalismo comum se contenta em registrar acontecimentos, em narrar fatos isolados e entregar ao leitor uma sucessão de eventos sem costura. O jornalismo estratégico, ao contrário, nasce da convicção de que a realidade não pode ser compreendida sem método, sem leitura crítica da correlação de forças e sem a consciência de que cada ato político está inserido em uma trama de poder, ideologia e estrutura material.


Nesse sentido, a paixão e a emoção não são descartadas: são a bússola moral que orienta o olhar, lembrando que a luta por justiça, liberdade e dignidade não é neutra. Indignar-se diante de um Estado genocida, denunciar crimes contra povos inteiros e defender valores iluministas é parte fundamental da tarefa do jornalista que não abdica da humanidade. Mas se essa paixão não estiver ancorada na observação da realidade objetiva, ela se dissolve em moralismo inócuo.


O exercício dialético sobre a conjuntura exige observar as engrenagens ocultas: dependências tecnológicas, pressões econômicas, alianças diplomáticas, aparatos militares, redes de desinformação e lobbies organizados. Sem isso, qualquer análise se transforma em grito vazio. É por isso que o jornalismo estratégico une a indignação ética ao cálculo frio, a moral ao pragmatismo, a chama revolucionária ao mapa da correlação de forças.


Esse método não romantiza a luta: ao contrário, mostra que a transformação histórica só é possível quando se conhece profundamente a estrutura que se quer transformar. É nesse encontro entre paixão e materialidade que o jornalismo estratégico se faz arma de compreensão e de antecipação. Ele não apenas descreve o presente, mas oferece chaves para compreender o futuro.


Assim, ao abordar a relação Brasil–Israel, este artigo não se limita a afirmar que, moralmente, o rompimento já deveria ter acontecido. O jornalismo estratégico exige que se entenda por que ainda não ocorreu, quais mecanismos de poder o travam, quais são os custos de cada decisão e como esses custos se distribuem entre Estado, sociedade e forças políticas. Só a partir dessa leitura é possível propor saídas que sejam, ao mesmo tempo, justas e viáveis.

O campo moral e iluminista: o dever de isolar o Estado genocida



Sob a ótica da razão iluminista e dos valores universais da humanidade, não há dilema possível: Israel, ao manter uma política sistemática de massacre contra o povo palestino, consolidou-se como um Estado genocida, pária internacional e vergonha para o século XXI. Essa constatação não é retórica: ela se sustenta em décadas de ocupação, em relatórios sucessivos de organismos internacionais, em decisões recentes da Corte Internacional de Justiça e nas denúncias cada vez mais contundentes de organizações de direitos humanos. A permanência de relações diplomáticas e comerciais com um regime que perpetra tais crimes representa, objetivamente, um ato de cumplicidade.


A moral revolucionária, herdeira dos princípios iluministas e das conquistas democráticas modernas, exige que todo Estado comprometido com a justiça e a liberdade rompa imediatamente laços com um poder que naturaliza a limpeza étnica, a segregação e a morte em escala industrial. Não há espaço para neutralidade diante de crimes contra a humanidade. O silêncio, a omissão ou a manutenção de “negócios como de costume” equivalem a endossar a barbárie.


O Brasil, pela sua tradição de liderança no Sul Global, pela memória de sua própria luta contra regimes autoritários e pela relevância de sua diplomacia ativa em favor da paz, tem ainda maior responsabilidade em agir de forma exemplar. Manter relações com Israel significa legitimar um Estado que converteu tecnologia em arma de dominação, religião em justificativa de apartheid e a narrativa de segurança em escudo para genocídio.


No plano simbólico e cultural, o rompimento teria peso imenso. Seria a reafirmação do compromisso brasileiro com a vida e com a dignidade humana. Seria também um gesto de solidariedade com os povos oprimidos do mundo e de alinhamento com uma ordem internacional baseada em direitos, e não em privilégios de potências armadas. É nesse campo moral que o governo Lula já é cobrado: no coração da ética, o Brasil deveria ter isolado Israel há muito tempo.


No entanto, o jornalismo estratégico nos lembra que a política não se move apenas pelo dever moral. Se o rompimento imediato é o imperativo ético, compreender por que ele ainda não aconteceu exige analisar as estruturas materiais, as pressões econômicas, diplomáticas e tecnológicas que pesam sobre o Brasil. É justamente essa transição do campo moral para o campo estrutural que ilumina a complexidade do problema e revela por que a luta exige não só coragem, mas cálculo.

Histórico recente da relação Brasil–Israel



A relação entre Brasil e Israel nos últimos anos deixou de ser apenas uma questão diplomática ordinária e se transformou em um campo de batalha simbólico, estratégico e geopolítico. O fio que conecta 2023 a 2025 é marcado por episódios sucessivos de tensão, cada um aprofundando a erosão dos vínculos bilaterais e evidenciando que a ruptura total já não é uma hipótese distante, mas um desfecho em gestação.


Em 2023, os sinais de distanciamento começaram a ganhar contornos públicos quando o governo brasileiro assumiu uma postura crítica em foros internacionais, denunciando a escalada da violência em Gaza e apoiando medidas cautelares contra Israel. Foi o início de uma guinada que rompia com o silêncio conivente de anos anteriores. A posição brasileira ganhou eco no Sul Global e despertou reações negativas tanto em Tel Aviv quanto entre setores pró-Israel no Brasil.


O ano de 2024 foi decisivo. Em fevereiro, após declarações de Lula comparando as ações israelenses em Gaza a massacres históricos, o embaixador brasileiro em Tel Aviv foi declarado persona non grata pelo governo Netanyahu. O gesto foi respondido com firmeza: Brasília chamou de volta seu embaixador, reduzindo o canal diplomático a um nível mínimo. O episódio inaugurou uma fase de hostilidade aberta, em que cada manifestação do Brasil em instâncias multilaterais era vista como afronta pelo governo israelense.


Ao longo de 2024 e 2025, a chancelaria brasileira reforçou seu papel ativo: apoio explícito ao processo em Haia contra Israel, participação em resoluções da ONU condenando crimes de guerra e defesa da Palestina como Estado pleno no sistema internacional. Essa postura consolidou o Brasil como um dos protagonistas do campo progressista global em defesa da causa palestina. Mas também ampliou o campo de retaliações — políticas, diplomáticas e simbólicas — vindas tanto de Israel quanto de seus aliados estratégicos, em especial os Estados Unidos sob a influência do trumpismo.


Em agosto de 2025, as relações foram formalmente rebaixadas. Sem embaixadores, limitadas a escritórios de representação, Brasil e Israel passaram a se tratar em termos burocráticos e protocolários. Foi o último degrau antes do rompimento completo. No entanto, a linha não foi cruzada: a manutenção mínima de laços servia tanto para preservar canais consulares quanto para administrar as múltiplas dependências em áreas sensíveis, da defesa à tecnologia.


O sequestro da Flotilha Sumud em outubro de 2025, com brasileiros entre os detidos, adicionou um novo patamar de gravidade. Pela primeira vez, cidadãos do país foram diretamente envolvidos em uma operação ilegal israelense em alto-mar. Esse episódio ampliou a pressão social e política interna, transformando a ruptura de possibilidade distante em exigência imediata. A crise, que vinha se acumulando em camadas, chegou ao ponto em que cada decisão do governo Lula não é apenas diplomática, mas histórica.

Israel e a guerra cultural no Brasil



Se a presença de Israel no Brasil pode ser medida em acordos de defesa, contratos de tecnologia e parcerias agrícolas, ela também se manifesta em um terreno mais difuso, mas igualmente decisivo: a guerra cultural. É nesse campo simbólico que Israel encontra um de seus principais vetores de influência, articulando-se com forças internas para moldar narrativas, alimentar consensos artificiais e consolidar alianças com a extrema-direita brasileira.


No plano religioso, a conexão entre o sionismo político e o neopentecostalismo brasileiro construiu uma ponte poderosa. Pastores influentes e líderes de grandes denominações passaram a reproduzir a ideia de que apoiar Israel é um dever bíblico, um sinal de fé e uma prova de fidelidade aos “valores do Ocidente”. Essa construção religiosa foi convertida em força política: milhões de fiéis passaram a ver a defesa irrestrita de Israel como parte de sua identidade, tornando qualquer crítica ao regime de Netanyahu alvo de campanhas de ódio e de acusações de “antissemitismo”.


Essa simbiose entre religião e política não surgiu do nada. Ela foi alimentada por visitas oficiais organizadas, por cooperação entre lideranças religiosas dos dois países e por forte presença de Israel em eventos, congressos e produções midiáticas voltadas para o público evangélico. O resultado é uma rede de blindagem ideológica que transforma Israel em um totem dentro da guerra cultural brasileira, usado como símbolo de resistência contra um suposto inimigo comum: o “comunismo” e o progressismo.


No campo político, Israel foi elevado a referência por parcelas da extrema-direita, que enxergam no regime de Netanyahu um modelo de “Estado forte”, capaz de unir religião, tecnologia militar e repressão contra inimigos internos. Essa imagem circula em think tanks conservadores, em setores da mídia corporativa e até em manuais de militância digital, que reproduzem o mito de Israel como potência moral e tecnológica. Trata-se de uma narrativa fabricada que serve para justificar a submissão do Brasil a interesses externos e enfraquecer qualquer projeto de soberania.


O lobby sionista no Brasil não atua apenas na política institucional, mas também no campo cultural e midiático. Reportagens, colunas e campanhas de opinião difundem a ideia de que Israel é “a única democracia do Oriente Médio”, ao mesmo tempo em que criminalizam vozes críticas, classificando-as como radicais ou extremistas. Essa operação simbólica tem duas funções: defender o regime israelense no exterior e deslegitimar, dentro do Brasil, setores que lutam pela soberania nacional e pela solidariedade ao povo palestino.


A guerra cultural, nesse sentido, não é um fenômeno periférico, mas um pilar da estratégia israelense no Brasil. Ela fornece legitimidade moral a uma política de dependência tecnológica e comercial, ao mesmo tempo, em que fragiliza o campo progressista ao colocá-lo como inimigo da fé e da “ordem ocidental”. É nessa interseção entre religião, mídia e política que Israel sustenta uma parte de sua influência sobre o debate nacional.

O lobby sionista como engrenagem global



Nenhum outro país do mundo conseguiu transformar sua diáspora e seus aliados ideológicos em uma máquina de pressão política tão eficaz quanto Israel. O chamado lobby sionista é uma engrenagem transnacional que atravessa governos, parlamentos, universidades, mídia e corporações, modulando decisões estratégicas em escala global. Sua força não reside apenas no dinheiro ou na influência empresarial, mas sobretudo na capacidade de ocupar simultaneamente o campo simbólico, o cultural, o político e o econômico, tornando Estados inteiros reféns de sua agenda.


Nos Estados Unidos, o exemplo é cristalino. Organizações como o AIPAC se consolidaram como atores centrais na definição da política externa norte-americana para o Oriente Médio. Deputados, senadores e presidentes já declararam abertamente que não sobreviveriam politicamente sem o apoio desse lobby, que financia campanhas, orienta pautas e distribui capital político com precisão cirúrgica. Israel conseguiu, assim, algo que nenhuma outra potência alcançou: capturar a política de seu principal aliado, condicionando o fluxo de bilhões em ajuda militar e tecnológica que sustentam seu aparato de guerra.


Esse modelo de influência se replica em diferentes países, ajustado às particularidades locais. Na Europa, o lobby atua especialmente em think tanks de segurança e defesa, além de redes midiáticas que insistem em colocar Israel como “bastião da civilização ocidental”. Na América Latina, a tática se dá pela combinação de redes empresariais, cooperação tecnológica e a mobilização de setores religiosos. O Brasil, como potência regional e pivô do Sul Global, ocupa um espaço especial nessa equação.


Aqui, o lobby opera em múltiplas camadas:


  • Política institucional: articulação em frentes parlamentares, pressão sobre votações e tentativas de blindar Israel de condenações no Congresso.

  • Economia e tecnologia: intermediação de contratos de defesa, segurança digital e agronegócio.


  • Mídia e opinião pública: difusão constante da ideia de Israel como “nação inovadora” e criminalização de vozes críticas.


  • Religião: a aliança com o sionismo cristão, que dá a Israel um poder simbólico imenso junto a milhões de fiéis evangélicos.


É nesse ponto que a narrativa do livro “Start-Up Nation: A História do Milagre Econômico Israelense” ganha centralidade. Vendido como manual do sucesso israelense, o livro tornou-se peça de propaganda sofisticada: transforma um complexo militar-industrial altamente dependente da espionagem, da ocupação e da guerra em símbolo de inovação e empreendedorismo. A exaltação do “milagre econômico” esconde que boa parte da tecnologia que sustenta Israel foi testada em cenários de repressão contra palestinos e depois exportada como inovação “civil”. É o caso de softwares de vigilância, drones, sensores e sistemas de segurança que, uma vez adaptados, entram no mercado global sob a aura de genialidade tecnológica.


Ao criticar essa narrativa, o que se expõe é o mecanismo real: o lobby sionista converte violência em inovação, guerra em negócios e opressão em modelo de desenvolvimento. Essa engrenagem não só legitima Israel no cenário internacional como também dissemina uma ideologia de submissão — a ideia de que pequenas nações só têm futuro se se tornarem satélites do poder militar e tecnológico israelense.


No Brasil, essa operação tem efeitos profundos. Não se trata apenas de contratos ou de cooperação agrícola, mas de um projeto de colonização simbólica: transformar a imagem de Israel em modelo aspiracional, ao mesmo tempo em que desqualifica a solidariedade com a Palestina como atraso ou radicalismo. É assim que o lobby sionista global encontra no Brasil terreno fértil para sua expansão, sustentado por elites políticas, setores empresariais e pelo aparato religioso-moral que alimenta a guerra cultural interna.

A dimensão estrutural: dependências tecnológicas e econômicas



Se no campo moral a ruptura com Israel já se justifica há muito tempo, no campo estrutural a realidade é mais complexa. O Brasil construiu, nas últimas duas décadas, uma teia de dependências tecnológicas e econômicas com empresas e instituições israelenses que não podem ser ignoradas. São relações que atravessam a defesa, a segurança cibernética, a agricultura e até mesmo acordos comerciais multilaterais. Cada uma dessas conexões representa não apenas um fluxo econômico, mas uma vulnerabilidade estratégica que o governo Lula precisa calcular com rigor.


Na área de defesa, o vínculo mais sensível é com a empresa AEL Sistemas, subsidiária da israelense Elbit, que integra o programa dos caças Gripen fornecendo os sistemas de aviônicos e displays. O mesmo grupo está presente no SISFRON, sistema de vigilância de fronteiras do Exército, com equipamentos ópticos e sensores de longo alcance. Esses contratos não são marginais: representam pontos vitais da soberania militar brasileira. Romper de forma abrupta significaria, na prática, abrir falhas críticas em áreas de defesa e vigilância do território nacional.


No campo da segurança cibernética e da vigilância digital, a presença israelense também é marcante. Empresas como a Cellebrite e a Cognyte forneceram softwares de interceptação, análise forense e monitoramento de comunicações a órgãos policiais brasileiros. Mais recentemente, a CySource firmou parcerias para treinamento e capacitação de militares e analistas em ciberdefesa. Essas plataformas, muitas vezes de uso exclusivo, criam uma dependência de suporte técnico e atualizações que tornam o Brasil vulnerável caso haja rompimento imediato das relações.


Na agricultura e gestão hídrica, a dependência assume forma diferente, mas não menos relevante. A Netafim, gigante da irrigação por gotejamento, domina parte importante da modernização agrícola no semiárido nordestino. A cooperação via Mashav, braço de diplomacia técnica de Israel, trouxe programas de dessalinização e manejo de recursos hídricos que, em muitos casos, substituem políticas públicas nacionais. Esse campo, aparentemente benigno, também é estratégico: ao controlar soluções críticas para a produção de alimentos e a gestão da água, Israel adquire poder de barganha em áreas sensíveis para o Brasil.


Além dessas cadeias de fornecimento específicas, há ainda o Acordo de Livre Comércio Mercosul–Israel, assinado em 2007 e em vigor desde 2010. Esse é o único tratado de livre comércio já efetivado pelo Mercosul com um país fora da região. Embora o volume total do intercâmbio não seja determinante para a economia brasileira, sua simbologia e sua estrutura legal criam custos políticos e diplomáticos para um rompimento unilateral.


Essas dependências não anulam o imperativo moral, mas explicam por que o governo brasileiro adota uma postura gradual e calculada. Romper relações sem preparar substitutos tecnológicos, sem reconfigurar contratos militares e sem construir alternativas em agricultura e água seria abrir vulnerabilidades que poderiam ser exploradas não apenas por Israel, mas também por seus aliados estratégicos, em especial os Estados Unidos. É por isso que Lula governa “com a faca no pescoço”: porque a decisão não é apenas ética, mas envolve engrenagens que sustentam a soberania do país.


Compreender essa dimensão estrutural é fundamental para não cair em análises superficiais. O Brasil não hesita porque concorda com o genocídio — hesita porque, para resistir, precisa calcular cada passo de modo a não ser estrangulado por dentro.

Pressões externas: EUA, tarifas e lawfare internacional



A decisão brasileira sobre romper ou não com Israel não ocorre no vácuo. Ela se desenrola sob o peso de pressões externas que combinam instrumentos econômicos, jurídicos, tecnológicos e informacionais operados sobretudo a partir dos Estados Unidos e orbitando o eixo de alianças que protege o governo israelense. Trata-se de um ecossistema de coerção sofisticado, com múltiplas alavancas acionáveis no curto prazo e com potencial de dano sobre a economia, a segurança e a política doméstica do Brasil.


A primeira camada é a econômica e regulatória. Tarifas aduaneiras, cotas e barreiras não tarifárias podem ser moduladas para atingir setores sensíveis do Brasil como aço, alumínio, celulose, alimentos processados e químicos. Medidas antidumping e investigações de salvaguardas servem como válvulas de retenção de exportações. A depender do clima político em Washington, o Brasil pode enfrentar revisões unilaterais de preferências setoriais e atrasos burocráticos em certificações sanitárias ou técnicas que funcionam como sanções disfarçadas.


A segunda camada é financeira. O arcabouço de sanções do sistema dólar permite constrição de pagamentos, diligência reforçada sobre bancos brasileiros e risco de overcompliance por parte de instituições internacionais que preferem paralisar fluxos a enfrentar multas. O simples anúncio de inclusão de pessoas físicas ou jurídicas brasileiras em listas sancionatórias já gera congelamento preventivo de relações bancárias. O risco não está apenas em sanções diretas, mas em sanções secundárias que punem quem negocia com alvos designados. Esse efeito sombra encarece crédito, alonga prazos de liquidação e pode provocar fuga tática de capitais de curto prazo.


A terceira camada é tecnológica e de propriedade intelectual. Controles de exportação sobre componentes críticos podem paralisar cadeias industriais brasileiras que dependem de chips, sensores, softwares licenciados e equipamentos de telecomunicações. Licenças de uso e atualizações de sistemas estratégicos podem ser suspensas por pressão política. Plataformas globais de infraestrutura digital e nuvem podem alterar termos de serviço, restringir APIs e dificultar auditorias técnicas. Em um país cuja digitalização é crescente, bloquear engrenagens intangíveis tem impacto real sobre produção, logística e serviços essenciais.


A quarta camada é jurídica e para-estatal. O lawfare internacional opera por litigâncias direcionadas, tribunais arbitrais e painéis regulatórios que buscam transformar divergências políticas em disputas contratuais. Escritórios de advocacia, think tanks e ONGs alinhadas a agendas geopolíticas podem acionar mecanismos de compliance, anticorrupção e direitos de investidores para travar contratos públicos, atrasar obras ou paralisar licitações sob o argumento de risco reputacional. Em paralelo, dispositivos migratórios permitem escalonar restrições de vistos a autoridades, empresários e pesquisadores, criando custo pessoal e institucional para a elite decisória brasileira.


A quinta camada é informacional. Campanhas coordenadas de desinformação e de framing midiático internacional apresentam o Brasil como aliado de inimigos estratégicos do Ocidente ou como violador de compromissos internacionais. Agendas de boicote dirigidas, rankings e relatórios de risco país podem ser manipulados para rebaixar a imagem brasileira e dificultar captação de investimentos. A batalha semiótica influencia preços de ativos, humor empresarial e decisões de portfólio. Ao mesmo tempo, redes religiosas e políticos estrangeiros amplificam narrativas que atacam a legitimidade do governo brasileiro, aproximando moralismo seletivo de pressões materiais.


A sexta camada é diplomática e multilateral. Em foros como OMC, OCDE, OEA e agências da ONU, bloqueios táticos e filibustering processual atrasam nomeações, dificultam acordos técnicos e retiram o Brasil de mesas onde se decidem padrões de comércio e tecnologia. Em bancos multilaterais e organismos financeiros, votos e vetos modulam ritmo e custos de financiamento para infraestrutura e transição energética. A mensagem é clara. Romper com Israel sem redes de proteção multilaterais e regionais expõe o Brasil a um corredor de retaliações distribuídas.


Nada disso invalida o imperativo moral. Apenas explica por que a estratégia exige cálculo fino. O Brasil pode absorver pressões se construir amortecedores. Diversificação de mercados, adensamento de cadeias produtivas críticas, acordos de compensação com parceiros não alinhados ao eixo EUA-Israel, redes de pagamentos alternativas e consórcios tecnológicos para substituir licenças sensíveis reduzem a vulnerabilidade estrutural. Em paralelo, alianças jurídicas e diplomáticas com Estados do Sul Global dão lastro normativo para sustentar medidas de isolamento a Israel sem que o Brasil corra sozinho o risco político.


A prudência do governo Lula não é covardia. É a compreensão de que um gesto correto no plano ético precisa sobreviver ao dia seguinte. A pressão externa existe, é mensurável e opera por múltiplas engrenagens. Enfrentá-la exige método, redundância de alternativas e tempo político. É por isso que o cálculo brasileiro busca transformar o choque moral em estratégia de Estado, capaz de resistir a tarifas, lawfare, chantagens tecnológicas e tempestades informacionais sem quebrar a espinha da soberania nacional.

Pressões internas: faca no pescoço



Se as pressões externas operam por sanções, tarifas, chantagens financeiras e lawfare internacional, as pressões internas não são menos intensas. O governo Lula governa em meio a um campo minado, onde Israel e seus aliados encontram no próprio território brasileiro vetores de sustentação e defesa de seus interesses. É nesse terreno que a “faca no pescoço” se torna metáfora perfeita: cada passo dado no sentido de romper com Israel é contrabalançado por forças organizadas que agem para travar ou retardar a decisão.


A primeira dessas pressões vem do campo religioso-evangélico. Ao longo de décadas, consolidou-se no Brasil a ideia — cuidadosamente plantada por redes transnacionais — de que apoiar Israel é um dever cristão, uma prova de fidelidade a Deus e um sinal de identidade espiritual. Pastores influentes transformaram a pauta pró-Israel em parte integrante da liturgia e da política de suas igrejas, mobilizando milhões de fiéis. Qualquer gesto de distanciamento em relação a Israel é imediatamente retratado nesses púlpitos como traição à fé. Essa pressão religiosa, convertida em força eleitoral e política, é um obstáculo significativo ao rompimento.


A segunda pressão é empresarial e econômica. Setores do agronegócio, beneficiados por tecnologias de irrigação e soluções hídricas israelenses, temem o impacto de um rompimento na continuidade de seus projetos. Empresários da segurança e da tecnologia digital também se alinham à defesa de contratos com empresas israelenses de defesa cibernética e de inteligência forense. Esses atores, articulados em associações e federações, exercem lobby junto ao Congresso e ao Executivo, argumentando que romper relações seria “prejudicar o desenvolvimento nacional”.


A terceira pressão vem da mídia corporativa e do campo informacional. Narrativas pré-fabricadas circulam diariamente nos jornais, nas televisões e nas redes sociais, associando qualquer crítica a Israel a antissemitismo ou radicalismo. O objetivo é deslegitimar o debate público e inibir vozes progressistas. É um terreno de guerra cultural em que a grande mídia, alinhada a interesses externos, ajuda a blindar Israel e a constranger o governo brasileiro.


Por fim, há a pressão parlamentar e partidária, com frentes organizadas pró-Israel atuando dentro do Congresso. Deputados e senadores, apoiados por redes de lobby, articulam discursos inflamados contra qualquer aproximação com a causa palestina e tentam enquadrar o governo como “inimigo de Israel” para desgastar sua imagem perante o eleitorado evangélico e setores empresariais.


Essas pressões internas não são menores do que as externas. Pelo contrário: elas funcionam como correias de transmissão da influência global de Israel dentro do Brasil. Criam barreiras políticas, sociais e ideológicas que tornam o rompimento um passo de alto custo. Para o governo Lula, a questão não é apenas internacional: é também administrar um tabuleiro doméstico onde cada movimento em direção à soberania e ao isolamento de Israel pode se converter em desgaste interno imediato.


É por isso que o cálculo estratégico precisa ser frio. O governo sabe que, no campo moral, a ruptura já se justifica. Mas também sabe que internamente enfrenta forças poderosas que tentam impedir esse movimento. Romper não é só enfrentar Israel: é enfrentar os tentáculos de sua influência dentro do Brasil, que se infiltram na religião, no empresariado, na mídia e na política institucional.

Cenários estratégicos



O dilema brasileiro diante de Israel não se resolve em termos absolutos, mas na escolha entre diferentes cenários de ação, cada um com seus custos, riscos e benefícios. O governo Lula não hesita por falta de convicção moral — hesita porque cada passo precisa ser calculado no tabuleiro complexo da política doméstica e da geopolítica internacional. Analisar esses cenários é fundamental para compreender por que a ruptura ainda não aconteceu e quais caminhos se abrem no horizonte.


Cenário A — Rompimento imediato


O Brasil anuncia a ruptura total das relações diplomáticas, seguindo o exemplo de Bolívia, Colômbia e outros países do Sul Global. O gesto teria um impacto simbólico imediato, projetando o país como liderança moral e consolidando Lula como estadista que não se curva à barbárie. O custo, no entanto, seria elevado: retaliações econômicas, pressões diplomáticas e desestabilização interna, especialmente pelo campo evangélico e setores empresariais dependentes de tecnologia israelense. No curto prazo, o país enfrentaria turbulência, mas no longo prazo consolidaria uma posição histórica de vanguarda.


Cenário B — Escalonamento gradual


O Brasil avança passo a passo: suspende cooperações militares, congela contratos de cibersegurança, revê programas de irrigação e reexamina o Acordo de Livre Comércio Mercosul–Israel. Em paralelo, intensifica a atuação no plano multilateral, fortalecendo denúncias em Haia e apoiando resoluções na ONU. Essa estratégia preserva a margem de manobra e reduz riscos de retaliação imediata, mas pode ser vista por setores progressistas como hesitação excessiva diante do genocídio. Ainda assim, é o caminho mais realista e provável no curto prazo.


Cenário C — Ruptura mediada por coalizão internacional


O Brasil só rompe quando houver lastro coletivo: uma articulação do Sul Global, possivelmente via BRICS ampliado, Mercosul ou G77, que crie rede de proteção econômica e diplomática. Nesse modelo, a ruptura viria acompanhada de mecanismos de compensação, como abertura de novos mercados, fortalecimento da cooperação tecnológica com China, Rússia e Índia e ampliação de instrumentos financeiros fora do dólar. É o cenário que reduz os riscos de retaliação, mas depende de tempo e de uma coordenação multilateral complexa.


Cenário D — Manutenção da ambiguidade estratégica


O Brasil mantém a atual linha: condena publicamente, apoia a Palestina em instâncias internacionais, rebaixa as relações diplomáticas ao mínimo, mas não rompe de fato. Essa opção preserva espaço de negociação e reduz riscos de curto prazo, mas cobra um preço alto no campo simbólico e moral. Internamente, a pressão da sociedade civil e da militância tende a aumentar, e a imagem de hesitação pode corroer o capital político do governo no campo progressista.


Cada cenário tem seus tempos, suas engrenagens e suas consequências. O que diferencia uma decisão estratégica de uma resposta tática é a capacidade de medir não apenas o impacto imediato, mas também a projeção histórica. O governo Lula precisa equilibrar os custos do presente com a responsabilidade de escrever um futuro em que o Brasil não seja cúmplice de crimes contra a humanidade.


No fim, a questão não é se haverá ruptura, mas quando e como ela ocorrerá. Os ventos da história empurram nessa direção. A estratégia brasileira precisa apenas garantir que, quando a decisão for tomada, o país esteja pronto para resistir às tempestades externas e internas que inevitavelmente virão.

Conclusão — Entre valores e realpolitik



No campo da moral e da ética iluminista, a resposta já está dada: manter relações diplomáticas e comerciais com Israel é endossar um regime que se consolidou como pária internacional e que converteu o genocídio do povo palestino em política de Estado. Sob essa ótica, não existe espaço para ambiguidade. O dever de qualquer nação comprometida com a justiça e com os direitos humanos é o isolamento completo de um Estado que transformou ocupação, segregação e massacre em rotina.


Mas a política não se move apenas pela força da indignação. A realidade objetiva impõe ao Brasil uma equação complexa. Dependências tecnológicas em defesa e cibersegurança, contratos agrícolas e de gestão hídrica, acordos comerciais multilaterais, além da correlação de forças internas e externas, formam uma teia de condicionantes que não pode ser ignorada. Romper, no imediato, não é apenas uma questão moral — é também um cálculo de sobrevivência econômica, diplomática e política.


O governo Lula, ao não decretar ainda o rompimento, não trai valores. Pelo contrário: mantém viva a chama da condenação moral, liderando nos foros internacionais, denunciando o genocídio e apoiando a Palestina com firmeza, enquanto prepara as condições para que o rompimento, quando vier, não seja apenas um gesto, mas um movimento irreversível. É o equilíbrio entre indignação e cálculo, entre valores e realpolitik, que define a estratégia brasileira.


Essa estratégia, no entanto, não pode ser eterna. A cada dia, Israel aprofunda seu status de vergonha da humanidade e arrasta consigo aqueles que lhe dão sustentação. O Brasil, pela sua história, não pode se colocar nesse lado da balança. Em algum momento, a ruptura será inevitável — seja por pressão popular, seja por alinhamento com coalizões do Sul Global, seja pelo imperativo histórico que empurra a humanidade contra a barbárie.


Quando esse dia chegar, será preciso estar preparado. A luta contra o Estado genocida de Israel não é apenas um gesto de solidariedade à Palestina. É, acima de tudo, um ato de afirmação soberana do Brasil, uma demonstração de que não nos curvaremos ao poder dos lobbies, das chantagens econômicas e da guerra informacional. É um passo que nos colocará ao lado certo da história, com a coragem de quem compreendeu que não há futuro possível sob o peso da barbárie.

pin-COMENTE.png
mantenha-se atualizado

Obrigado pelo envio!

  • linktree logo icon
  • Ícone do Instagram Branco
  • x logo
  • bluesky logo icon
  • Spotify
  • Ícone do Youtube Branco
bottom of page