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Bigtechs se unem contra os pais brasileiros

  • 19 de ago.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 20 de ago.

O que se viu foi menos um debate sobre proteção da infância e mais um lobby coordenado para punir pais e isentar as big techs de sua responsabilidade estrutural


A Comissão de Segurança Pública da Câmara é presidida pelo deputado Delegado Paulo Bilynskyj (PL-SP), figura marcada por polêmicas pessoais e pela contradição de estar à frente de um colegiado que discute justamente a proteção da sociedade. Esse pano de fundo já imprime à comissão uma carga de ironia incômoda.

Foi sob esse guarda-chuva que, em 19 de agosto de 2025, a deputada Caroline de Toni (PL-SC) conduziu audiência pública sobre crimes cibernéticos contra crianças e adolescentes. De Toni é a mesma parlamentar que, em 2023, acusou um professor de “ofendê-la com categoria acadêmica” após ouvir uma explicação sobre como a cognição molda a percepção da realidade. O pesquisador havia exemplificado que os indígenas não viram as caravelas de Colombo porque não tinham referências imagéticas para representá-las, mas a deputada reagiu dizendo que estava sendo alvo de deboche. A cena viralizou e se tornou um retrato do embate entre pensamento científico e a retórica bolsonarista que recusa mediações racionais. Foi esta retórica que deu o tom da audiência de agosto de 2025, marcada por um discurso uníssono de responsabilização das famílias. Apesar da diversidade de currículos dos convidados, oriundos da Polícia Civil, Ministério Público, Polícia Federal e das maiores plataformas digitais do mundo, a convergência foi em minimizar a responsabilidade das empresas e transferir o peso para pais e responsáveis.

Estiveram presentes o policial civil Carlos Henrique Pires, especialista em investigação de crimes cibernéticos em Santa Catarina, o promotor Diego Roberto Barbieiro, coordenador do Cyber GAECO, a delegada da Polícia Federal Rafaella Vieira Lins Parca, além de Dário Campregher Neto, gerente de relacionamento com autoridades da Meta, Marcos Paulo Peron, de relações governamentais da Kodex, e Paulo Ricardo Aguiar de Deus, gerente de relações com autoridades do TikTok e ex-policial federal. A composição, na prática, evidenciou como as big techs têm investido em recrutar quadros oriundos das próprias forças de persecução penal, numa simbiose que legitima seu discurso de cooperação técnica e dilui responsabilidades institucionais.

Esse arranjo, como analisamos em nosso artigo assinado por Rey Aragon, corresponde a uma estratégia de blindagem política e simbólica: ao contratar policiais, promotores e delegados que já gozavam de reconhecimento público por sua atuação em investigações, as plataformas incorporam o ethos da lei e da ordem e passam a se apresentar não como parte do problema, mas como parte da solução. Na audiência, isso se refletiu no tom uníssono das falas, em que representantes de empresas e autoridades públicas se confundiam no mesmo repertório: a internet seria inevitável, os riscos incontroláveis, e a verdadeira fronteira de contenção estaria no âmbito familiar.

A fala de Paulo Ricardo Aguiar de Deus foi exemplar nesse sentido. Ele defendeu que o TikTok “produz relatórios transparentes sobre segurança”, reforçando o compromisso da plataforma com a integridade de seus usuários. Ao citar dados recentes, mencionou medidas como o programa de recompensa por bugs em parceria com o HackerOne e a auditoria independente do NCC Group no âmbito do Project Clover, voltada a monitorar fluxos de dados e corrigir vulnerabilidades. Esses relatórios, publicados trimestralmente, registram tentativas de acesso não autorizado e medidas de mitigação. Embora reforcem a imagem de zelo técnico, a audiência não se deteve em questionar a eficácia real dessas ações frente ao crescimento de conteúdos de exploração infantil, tema central do encontro.

 🔎  A presença da Kodex na audiência

A companhia se apresenta como parceira estratégica no combate a crimes digitais, oferecendo soluções de monitoramento e ferramentas de cooperação entre plataformas e órgãos policiais. Na prática, a Kodex funciona como um elo terceirizado que intermedeia pedidos de informações de autoridades para empresas de tecnologia, facilitando o acesso a dados sensíveis de usuários. Essa posição tem gerado críticas, já que desloca a mediação de temas de interesse público para uma entidade privada, sem a mesma transparência e controle democrático que se exige do Estado. Na audiência, a participação do colaborador da Kodex foi conduzida sem qualquer explicação sobre o papel da empresa, como se fosse parte orgânica do aparato institucional de segurança. Essa inserção discreta expôs como a intermediação privada de dados e investigações tem se normalizado no debate sobre crimes cibernéticos, deslocando o eixo da discussão da regulação das plataformas para a responsabilização das famílias.


A narrativa de convergência se repetiu nas demais falas.

Carlos Henrique Pires afirmou que o problema não está nas plataformas, mas na falta de legislações rígidas para punir pais que permitem ou não fiscalizam o acesso de seus filhos. Diego Barbieiro reforçou essa lógica ao lembrar que a maioria dos casos investigados pelo Cyber GAECO nasce dentro das próprias casas, e não de falhas técnicas das empresas. A delegada Rafaella Parca trouxe dados do Anuário da Violência, destacando o aumento alarmante de mais de 30% nas denúncias de exploração sexual de menores em ambiente virtual nos últimos anos, mas seguiu a mesma trilha ao defender que a primeira barreira de proteção é familiar. Ela ainda citou a importância de legislações de verificação etária, mencionando projetos em tramitação no Congresso que vão desde a exigência de documentos oficiais para a criação de contas até o bloqueio automático de acessos para menores de idade. Entre eles, lembrou do PL 2.628/2022, conhecido como PL das Fake News, que também incorpora mecanismos de verificação etária. Apesar de trazer números robustos e de remeter a soluções legislativas em debate, sua fala reforçou a mesma lógica predominante na audiência, que priorizou a responsabilização das famílias e colocou a tecnologia como ferramenta auxiliar, e não como núcleo do problema.

O crescimento das denúncias de exploração infantil não pode ser explicado apenas por descuido familiar. Estudos de captologia, conceito criado por B. J. Fogg em Stanford, demonstram que as tecnologias são deliberadamente construídas como ferramentas persuasivas, capazes de alterar hábitos e comportamentos sem que o usuário perceba.

Foi nesse ambiente que o deputado Sargento Fahur (PSD-PR) retomou o chamado PL do estupro virtual, bandeira que ele tem patrocinado como exemplo de resposta legislativa. Para Fahur, a imprensa deveria dar maior visibilidade à proposta, repetindo a analogia feita por Dário Campregher Neto, da Meta, segundo a qual deixar crianças sozinhas nas redes equivale a “abandoná-las no centro da cidade à noite”. Em tom de slogan, o parlamentar resumiu: “vamos policiar”.

Pesquisas sobre design digital mostram que não se trata apenas de vigilância doméstica: as plataformas são projetadas para capturar atenção de forma compulsiva, utilizando técnicas conhecidas como dark patterns, que exploram vulnerabilidades cognitivas e induzem comportamentos repetitivos semelhantes aos de cassinos.

O debate em torno do projeto, porém, logo derivou para ataques radicais ao Supremo Tribunal Federal. O deputado Delegado Caveira (PL-PA), ao comentar a participação de menores em Paradas do Orgulho LGBTI+, acusou ministros da Corte de serem “estupradores virtuais” por permitir o que ele classificou como “exposição de crianças a ambientes impróprios”. Sua fala evocou as ADIs 7584 e 7585, que tramitam no STF sobre a constitucionalidade de lei amazonense que proíbe a presença de menores nesses eventos, mas transformou uma discussão jurídica em ataque direto à honra da Suprema Corte, em linha com a retórica golpista que a extrema direita alimenta desde 2019.

 🔎  O PL do Estupro Virtual

O Projeto de Lei nº 2293/2023, de autoria do senador Fabiano Contarato (PT-ES), propõe alterar o Código Penal para explicitar que o crime de estupro de vulnerável se consuma mesmo sem contato físico entre agressor e vítima, bastando a prática de ato libidinoso induzido por meios virtuais. A proposta busca consolidar entendimento já firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual a ofensa à dignidade sexual não exige violência física direta, mas pode ocorrer pela indução remota, como no caso de aliciamento de crianças para atos sexuais gravados e compartilhados na internet.


O tom transbordou em outras intervenções. O deputado Sargento Gonçalves (PL-RN), por exemplo, desviou para o campo armamentista, defendendo que “não é a arma que mata, mas o indivíduo”. Ao recorrer a essa máxima, comum no discurso pró-armas, o parlamentar buscou uma analogia direta com as plataformas digitais, isentando os algoritmos de qualquer responsabilidade sobre a violência online. Na sua leitura, assim como uma arma só se torna letal nas mãos de quem puxa o gatilho, as redes sociais só seriam nocivas porque usuários as utilizam de forma indevida. A ironia da formulação está justamente em colocar as plataformas no lugar de pistolas e fuzis, objetos que, por si só, já carregam um potencial letal e exigem regulação rigorosa do Estado. Ao aplicar esse raciocínio às big techs, Gonçalves inadvertidamente reforçou a ideia de que os algoritmos, assim como as armas de fogo, são mecanismos de alto poder de impacto social, capazes de potencializar riscos quando não há controle adequado. A analogia, em vez de isentar as plataformas, acabou por escancarar o quanto o debate ainda oscila entre a naturalização da tecnologia e o reconhecimento de seus efeitos destrutivos.

A comparação falha em reconhecer que os algoritmos, diferentemente de armas inertes, são programados para agir sobre o comportamento humano. Pesquisas em psicologia e neurociência já associaram o excesso de tempo de tela a alterações cerebrais em crianças, atrasos de linguagem e dependência comportamental.

Osmar Terra (PL-RS) e outros parlamentares também aproveitaram o tema da infância para insistir que o STF age como ditadura, ligando a proteção de menores à disputa sobre regulação das plataformas digitais.

Nesse tabuleiro, a participação de Marcos Paulo Peron, representante da Kodex, foi introduzida com tanta naturalidade que sequer se explicou o papel da empresa. Pouco conhecida no Brasil e sem página em português nas redes, a Kodex atua como intermediária entre big techs e autoridades de segurança, operando ferramentas de compliance e monitoramento. Contratada para lidar com pressões regulatórias e pedidos de dados sigilosos, a empresa ocupa uma zona cinzenta entre setor privado e aparato estatal. Sua presença discreta e ao mesmo tempo sob o manto da autoridade na audiência revelou como essa intermediação já se tornou naturalizada, inserindo atores privados em espaços de debate público sem o devido escrutínio.

📌 A captura não é inocente

A narrativa de que a exploração infantil na internet decorre apenas da falta de vigilância familiar é uma simplificação injusta e mora12lizante. Pesquisas sobre arquitetura digital demonstram que a captura de atenção não é um efeito colateral, mas um objetivo central do modelo de negócios das plataformas. O design algorítmico é pensado para induzir permanência, estimular compulsões e direcionar comportamentos, utilizando cores, sons, notificações e sistemas de recompensa semelhantes aos usados em cassinos. Essa engrenagem atinge não só crianças, mas adolescentes e adultos. Estudos da psicologia cognitiva, da neurociência e da comunicação digital revelam que o ambiente online é estruturado para gerar dopamina, criar ciclos de dependência e facilitar a coleta massiva de dados. Nesse contexto, a ideia de que bastaria maior disciplina doméstica para proteger os menores não apenas ignora o poder da engenharia algorítmica, como serve para blindar as big techs de qualquer regulação efetiva. Trata-se de uma operação maliciosa: responsabilizar os indivíduos e suas famílias enquanto se oculta que a exploração de vulnerabilidades humanas está no próprio coração da lógica de monetização dessas empresas.


O saldo do encontro foi um painel que multiplicou alertas sobre os riscos da internet para crianças, mas onde os principais responsáveis, as plataformas que lucram com conteúdos e algoritmos nocivos, saíram ilesas com auxílio do poder público e da força policial. Esse deslocamento de culpa é malicioso porque esconde a engrenagem central: a exploração de vulnerabilidades humanas é a base da economia da atenção, onde dados pessoais e tempo de uso são convertidos em lucro. Não é negligência parental, é um projeto de captura estruturado. Defendidas por representantes com histórico de repressão estatal, conseguiram deslocar a questão para o campo da moral e da disciplina doméstica. A extrema direita, por sua vez, seguiu presa na sinuca política que a persegue: clama pela defesa da infância, mas rejeita qualquer proposta de regulação digital que de fato poderia reduzir a exploração e a adultização de crianças no ambiente virtual.



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