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De Cabral ao PCC, o feudo sobre rodas que sequestrou o direito à cidade

  • Foto do escritor: Sara Goes
    Sara Goes
  • 7 de out.
  • 8 min de leitura

Análise de uma guerra híbrida urbana: como oligarquias e o crime organizado usam a tecnologia e a lei para sequestrar a mobilidade no Brasil


A suspensão abrupta de 25 linhas de ônibus em Fortaleza, em setembro de 2025, não foi apenas um transtorno para milhares de cidadãos. Foi a manifestação mais recente e explícita de uma crise estrutural que revela a natureza do transporte público no Brasil: um direito social, garantido pela Constituição, operado como um feudo privado por um pequeno círculo de oligarquias familiares. 


A manobra do sindicato patronal Sindiônibus, justificada por um "desequilíbrio financeiro" atribuído à concorrência com aplicativos, expôs como a interrupção de um serviço essencial é usada como ferramenta de barganha para proteger um modelo de negócio predatório. Trata-se de uma tática de guerra assimétrica, onde um ator privado utiliza sua posição em uma infraestrutura crítica para chantagear o poder público e a sociedade, travando uma batalha que é, ao mesmo tempo, econômica e informacional.


O episódio na capital cearense é o fio condutor de uma história que começa décadas antes e se espalha por todo o país. É uma narrativa sobre como decisões políticas tomadas nos anos 1970, durante a urbanização acelerada do país, cimentaram a hegemonia do ônibus e entregaram as chaves da mobilidade urbana a empresários que se tornariam os "barões do ônibus". Este arranjo, fortalecido por um subinvestimento público crônico que minguou de 1,5% do PIB nos anos 1970 para medíocres 0,3% nas décadas seguintes, criou uma dependência mútua e assimétrica. O Estado precisava das empresas para mover a população, mas as empresas passaram a ditar as regras, transformando concessões públicas em heranças familiares. Nesse processo, o Estado abdicou de sua soberania sobre a mobilidade, entregando a gestão de um dos principais fluxos de dados e de vida da cidade, o ir e vir das pessoas, a interesses privados que operam sem transparência.


A crise de 2025 em Fortaleza não é um evento isolado, mas o clímax de um embate ideológico de longa data. Durante a Gestão Luizianne Lins (2005-2012), o poder municipal buscou ativamente confrontar o modelo de negócio corporativo do Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do Ceará (Sindiônibus).


Nessa gestão, o transporte público foi tratado como um serviço essencial e um instrumento de distribuição de renda. A principal política adotada foi o controle tarifário, que resultou na Tarifa Social – uma passagem mais acessível –, garantindo que o acesso à cidade funcionasse como uma política pública. Essa abordagem, que chegou a congelar a tarifa por quatro anos e garantir a meia passagem ilimitada para estudantes, transformou Fortaleza em uma capital de tarifas relativamente baixas no cenário nacional.


Contudo, a decisão unilateral do Sindiônibus de suspender 25 linhas em setembro de 2025, sob a alegação de "desequilíbrio financeiro", expôs a fragilidade do sistema: a insustentabilidade financeira de um modelo que depende exclusivamente da receita da catraca. Embora a Empresa de Transporte Urbano de Fortaleza (Etufor) tenha declarado a ação ilegal, a manobra patronal, que capitalizou na queda de passageiros devido à concorrência dos aplicativos, ilustrou como a crise de financiamento é usada para pressionar o poder público e proteger o oligopólio, configurando a capital cearense como um estudo de caso vívido do dilema nacional.


A anatomia do poder


O poder desses conglomerados não é abstrato. Ele tem nome e sobrenome. Em São Paulo, o império foi erguido por José Ruas Vaz, que a partir de uma única empresa de viação em 1961, construiu um conglomerado que chegou a controlar mais da metade da frota da maior cidade do país. O segredo do Grupo Ruas não está apenas na quantidade de ônibus, mas em uma sofisticada estratégia de integração vertical. O grupo tem participação na Caio Induscar, que fabrica as carrocerias; é sócio do Banco Luso-Brasileiro, que financia a compra de frotas para os concorrentes; e, antecipando o futuro, diversificou para concessões de metrô e até para o controle da publicidade nos pontos de ônibus. 


Este ecossistema fechado torna a concorrência uma miragem. Quando a prefeitura exige ônibus melhores, negocia com um operador que é também o fabricante. Novos entrantes precisam buscar financiamento em um banco controlado pelo incumbente. A licitação se torna uma formalidade, um teatro para legitimar o poder de quem já domina toda a cadeia de valor. Essa arquitetura de negócios funciona como uma tecnologia de poder, um ecossistema fechado desenhado para anular o mercado e a regulação estatal, configurando uma forma de soberania corporativa privada sobre um bem público.


Este padrão se repete nacionalmente. A família Constantino, originária de Minas Gerais, usou a fortuna dos ônibus para fundar a companhia aérea Gol. No Rio de Janeiro, a dinastia Barata, liderada pelo patriarca Jacob Barata, o "Rei dos Ônibus", domina o setor há mais de meio século. Em Curitiba, a família Gulin mantém uma hegemonia de 70 anos. Em Salvador, o Grupo Evangelista (GEVAN) controla mais de um terço da frota, ainda que a operação seja mascarada por uma estrutura de consórcios.


As rotas da corrupção


A manutenção desse poder não se limita a estratégias de mercado. Ela é cimentada por uma corrupção sistêmica, cuja capilaridade se estende do poder municipal ao federal. A Operação Ponto Final, um desdobramento da Lava Jato, desvendou no Rio de Janeiro um esquema de propina institucionalizada. A federação das empresas, a Fetranspor, mantinha uma "caixinha" que movimentou mais de 260 milhões de reais para agentes públicos, incluindo 122 milhões de reais para o ex-governador Sérgio Cabral, em troca de tarifas favoráveis e benefícios fiscais. O clã Barata era uma peça central do esquema.  Embora as investigações e condenações em primeira instância tenham confirmado esse esquema, as sentenças contra Sérgio Cabral e Jacob Barata Filho foram posteriormente anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por questões de incompetência de juízo, resultando na redistribuição dos processos para a Justiça Estadual do Rio de Janeiro.


Em Brasília, Henrique Constantino admitiu em delação premiada o pagamento de propina a Eduardo Cunha para garantir a liberação de recursos do FGTS para suas empresas. Em São Paulo, o "Trensalão" Tucano revelou um cartel de multinacionais que fraudava licitações do metrô e dos trens metropolitanos. Enquanto Constantino teve sua delação homologada, que resultou em multas e ressarcimentos milionários, o caso do "Trensalão" resultou na condenação de 11 empresas e multas de R$ 515 milhões pelo CADE por formação de cartel, mas os processos na esfera criminal (corrupção) tiveram um avanço mais lento na Justiça.


A face mais alarmante dessa criminalidade, no entanto, foi exposta em 2024 pela Operação Fim da Linha. As investigações revelaram como o Primeiro Comando da Capital (PCC) se infiltrou e passou a controlar duas empresas de ônibus em São Paulo, a Transwolff e a UpBus. A facção teria injetado dezenas de milhões de reais do tráfico para lavar dinheiro, vencendo licitações e recebendo quase 5,5 bilhões de reais em recursos públicos enquanto servia de fachada para o crime organizado. De Cabral ao PCC, a lógica é a mesma: o transporte é um ativo a ser explorado, seja para o enriquecimento ilícito por meio da corrupção política, seja para a lavagem de dinheiro do crime. A diferença crucial é a natureza do ator que captura o sistema, transitando da corrupção política tradicional para a infiltração direta de uma organização criminosa, que opera com lógicas de guerra não convencional para expandir seu poder e lavar seus ativos dentro da institucionalidade.


A resistência na outra ponta da catraca



Contra esse poder entrincheirado, a resistência mais constante vem do outro lado da catraca: os trabalhadores. Motoristas e cobradores, organizados em sindicatos, enfrentam uma luta desigual contra conglomerados com imenso poder financeiro e político. Suas greves, frequentemente, transcendem a pauta salarial e se tornam um termômetro das tensões sociais.


A greve dos rodoviários de Brasília em 1985, por exemplo, foi um ato político que ajudou a acelerar o fim da Ditadura Militar. Em Campinas, em 1986, uma paralisação garantiu não apenas ganhos salariais, mas o fim da prática abusiva de descontar prejuízos de assaltos e acidentes dos salários dos trabalhadores. Mais recentemente, no Rio de Janeiro, trabalhadores denunciaram jornadas de 12 horas com pagamento por apenas 7, expondo um modelo de operação que busca o lucro máximo pela sobrecarga de funcionários e veículos.


A luta sindical, vista por uma ótica de esquerda, não é uma disputa meramente corporativa. Ao lutar por condições dignas de trabalho, os rodoviários denunciam a precarização que afeta diretamente o passageiro. A briga contra jornadas exaustivas é uma briga contra acidentes. A exigência por manutenção adequada é uma exigência por segurança para todos. A resistência dos trabalhadores é, em essência, a linha de frente da defesa de um serviço público de qualidade, criando uma aliança natural, ainda que muitas vezes latente, com os usuários.


A encruzilhada: mercantilizar ou desmercantilizar


O colapso do modelo financiado pela catraca, acelerado pela concorrência dos aplicativos e pelo aumento das gratuidades, colocou o Brasil em uma encruzilhada. De um lado, a agenda neoliberal, inimiga do conceito de transporte como direito, propõe aprofundar a mercantilização. A solução seria a privatização de sistemas sobre trilhos, como o metrô e a CPTM. O argumento é o da suposta eficiência privada.


A realidade, porém, desmente o discurso. A experiência com as linhas 8 e 9 da CPTM em São Paulo, já concedidas à iniciativa privada, é marcada pelo aumento de falhas e pela piora do serviço. Sindicatos e movimentos sociais alertam que a lógica do lucro privado leva inevitavelmente a tarifas mais caras, precarização da manutenção e cortes em linhas menos rentáveis, excluindo a população mais pobre. A privatização, sob o lema "direito não é mercadoria", significa tratar o acesso à cidade como um privilégio para quem pode pagar.


Do outro lado da encruzilhada, surge um projeto transformador: a desmercantilização radical do serviço por meio da Tarifa Zero. A proposta, que deixou de ser utopia para se tornar o centro do debate nacional, é elogiada e estudada pelo Governo do Brasil. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva solicitou estudos de viabilidade para a implementação da gratuidade em todo o país, reconhecendo a insustentabilidade do sistema atual.


O financiamento, desafio central, viria de um novo pacto social. Propostas em debate no Congresso incluem a reforma do vale-transporte, transformando-o em uma contribuição patronal para um fundo de mobilidade, o que poderia arrecadar cerca de 100 bilhões de reais, valor estimado para custear todo o sistema. Outras fontes incluem a taxação de aplicativos de transporte e a criação de um Sistema Único de Mobilidade (SUM), nos moldes do SUS, com financiamento tripartite entre União, estados e municípios.


A proposta representa, em última análise, um projeto de retomada da soberania urbana e digital. Trata-se de reconquistar o controle público sobre os fluxos, os dados e a infraestrutura que definem o acesso à cidade, tratando a mobilidade não como um algoritmo de lucro, mas como a base para a cidadania.


A viabilidade não é apenas fiscal, mas econômica e social. Um estudo da UFMG para Belo Horizonte concluiu que cada 1 real investido na gratuidade geraria um retorno de 3,89 reais para a economia local, além de um impacto deflacionário positivo para as famílias de baixa renda. A experiência de mais de 100 municípios que já adotaram a medida, como Caucaia, vizinha a Fortaleza, mostra um aumento expressivo no número de passageiros e um aquecimento do comércio local.


A crise em Fortaleza não é o fim da linha, mas um chamado à ação. A trajetória que vai dos esquemas de Cabral à infiltração do PCC demonstra o fracasso de um modelo que privatizou um bem público e o entregou à lógica do lucro e do crime. Continuar nesse caminho é aprofundar a desigualdade. O futuro exige uma mudança de paradigma: desmantelar os oligopólios, fortalecer o controle público e, principalmente, reconceituar o transporte como um direito social fundamental, financiado por toda a sociedade. A Tarifa Zero não é apenas uma política pública, é a via mais coerente para construir cidades mais justas, democráticas e, finalmente, acessíveis a todos.

1 comentário


Luis Delcides Rodrigues da Silva
Luis Delcides Rodrigues da Silva
08 de out.

Muito bom seu texto, Sara. Me faz lembrar do que vivencio aqui na Zona Leste. Moro numa região super populosa e o bairro onde moro tornou-se um local de passagem. A rua principal passam 3 linhas de ônibus super lotadas . A não criação de linhas sempre tem a desculpa da "sobreposição de linhas".


Recentemente, foi eliminada 1 linha de ônibus que saia daqui da Rua e ia até Guaianazes, passando por um dois bairros populosos - Jardim São Carlos e Cohab Fazenda do Carmo . A SPtrans colocou 24 veículos em uma linha - 3063/10 - para passar de 5 em 5 minutos. Hoje, pelo que observei, não tem mais 24 veículos, deve ter caído para 18 e aumento…


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