EUA transformaram o Brasil no novo front da coerção global
- Rey Aragon
- há 19 horas
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Da ameaça militar explícita à guerra híbrida com tarifas, sanções e desinformação, os Estados Unidos reposicionam seu poder no Caribe e no Atlântico Sul, mirando Brasil e Venezuela e reacendendo a disputa pela soberania no Sul Global.
A Casa Branca rompeu o limite da retórica ao ameaçar usar “poder militar” contra o Brasil. Essa escalada marca não apenas uma crise bilateral, mas um redirecionamento global da coerção norte-americana, que volta a tratar a América Latina como seu “quintal” estratégico. O Brasil, por sua posição geopolítica e peso no Sul Global, tornou-se o epicentro dessa disputa.
A ameaça que muda tudo — 9 de setembro de 2025

Hoje, a Casa Branca cruzou uma linha que separa a pressão diplomática do aviso estratégico: ao ser questionada sobre o julgamento de Jair Bolsonaro no STF, a porta-voz de Donald Trump afirmou que o governo “não teme usar o poder econômico e militar” para “defender a liberdade de expressão”. Não é um despacho burocrático — é um recado calculado, em horário nobre, com alvo e data: Brasil, 9/9/2025.
Para o leitor comum, pode soar como bravata. Para quem observa estratégia, é sinalização coercitiva: acoplar, no mesmo fôlego, “econômico” e “militar” enquanto corre, em Brasília, a fase final do julgamento do ex-presidente por trama golpista. É a tradução pública de um tabuleiro que já vinha sendo armado: sanções ao ministro Alexandre de Moraes sob o guarda-chuva Global Magnitsky (30/7) e o tarifaço de 50% sobre importações brasileiras (decreto de 30/7, vigor desde 6/8). Essas duas alavancas, combinadas à fala de hoje, formam o tripé da coerção — sanções, tarifas, dissuasão militar.
A gravidade também está no contexto: o STF começou a deliberar se Bolsonaro orquestrou uma tentativa de golpe — um processo acompanhado pela imprensa internacional e que reorganiza a política brasileira em tempo real. Atacar esse ponto com retórica de “poder militar” não apenas amplifica a pressão externa; contamina o campo informacional interno e procura redesenhar custos políticos para o Brasil sustentar o Estado de Direito.
Há quem pergunte: “Mas existe risco de ação armada imediata?”. Não é disso que se trata. O que está sobre a mesa, hoje, é mais sofisticado: manter o clima de espada suspensa enquanto os instrumentos já acionados produzem efeitos materiais e psicológicos. Sanções sinalizam risco bancário e reputacional; o tarifaço encarece exportações e reorganiza cadeias; a menção ao “poder militar” eleva a temperatura num hemisfério onde os EUA já reposicionam meios navais e aéreos no Caribe, o que o próprio governo brasileiro reconhece como fator de tensão. Isso não é guerra declarada — é guerra de custos.
O leitor deve reter um ponto: não é a casca da frase — é o timing e o acoplamento. Em poucas semanas, Washington: (1) sancionou um ministro da mais alta corte do Brasil; (2) oficializou tarifa de 50% sobre uma ampla cesta de bens brasileiros; e (3) hoje, diante de câmeras, agregou a variável militar ao discurso. Essa sequência constrói uma narrativa de excepcionalidade destinada a justificar mais camadas de pressão, se necessário. É assim que se move a coerção no século XXI: por incrementos, até que a outra parte ceda ou reconfigure alianças.
Também importa dizer o que não foi dito: a mesma porta-voz indicou que, neste momento, não há anúncio de novas punições além das já em vigor. Isso deixa claro que a frase sobre “poder militar” funciona, hoje, como alavanca política e psicológica, enquanto sanções e tarifas seguem trabalhando silenciosamente nas engrenagens.
Por isso este 9/9 é um marco: a partir daqui, o Brasil precisa ler cada movimentação não como notícia solta, mas como parte de uma campanha coerente — cuja lógica é aumentar, passo a passo, o custo de defender soberania jurídica e regulatória. O que veremos nos próximos tópicos é como esse arcabouço se traduz em deslocamentos no Caribe, em gargalos técnicos (ITAR), em guerra informacional e em escolhas de rota com o Sul Global. Hoje, a ameaça ficou explícita. O jogo, porém, já estava em andamento.
O império volta ao quintal

A frase da Casa Branca não veio do nada. Ela se conecta a um movimento maior: o retorno operacional dos Estados Unidos ao seu “quintal estratégico”, a América Latina. Enquanto os olhos do mundo estavam voltados para a Ucrânia ou para o Oriente Médio, Washington realocou parte de sua máquina de coerção para o Caribe e para o Atlântico.
Nas últimas semanas, dez caças F-35 pousaram em Porto Rico, o navio-anfíbio USS Iwo Jima passou a operar com uma força-tarefa de fuzileiros navais, e a retórica mudou: “isto não é treinamento”, disse o secretário de Defesa a bordo. Poucos dias depois, um barco associado ao Tren de Aragua foi afundado no mar do Caribe. Onze mortos. A justificativa foi o “combate ao narcotráfico”. O efeito real foi outro: demonstrar poder letal nas portas da Venezuela e enviar recado a toda a região.
No mapa estratégico, o Caribe volta a ser tratado como plataforma de dissuasão. A mensagem é clara: a qualquer momento, Washington pode projetar força para pressionar Caracas, Bogotá, Quito — ou mesmo Brasília, se julgar conveniente. O Atlântico Sul, até agora um espaço de relativa tranquilidade, passa a ser olhado com mais atenção. A 4ª Frota já reativa exercícios multinacionais e posiciona o Brasil como peça-chave, mesmo em meio à crise diplomática.
A narrativa oficial fala em “narcotráfico” e “terror”. Mas a lógica de fundo é a mesma que moldou décadas de política externa americana: reocupar o hemisfério, conter influências externas (China, Rússia) e disciplinar países que se afastam da cartilha. A diferença é que, em 2025, o Brasil não é apenas vizinho incômodo — é epicentro de uma disputa global.
Esse retorno não é apenas militar. É psicológico. O sobrevoo de F-16 venezuelanos sobre um destróier dos EUA, os vídeos de navios em redes sociais, os alertas de prontidão na Amazônia — tudo isso cria o ambiente perfeito para a guerra híbrida: medo, incerteza e percepção de vulnerabilidade. O que se decide no Caribe ecoa no Congresso brasileiro, no STF e nas telas dos celulares.
Por isso, quando a porta-voz de Trump fala em “poder militar”, não é um improviso. É o coroamento de uma estratégia de show of force que devolveu os EUA ao tabuleiro regional. O império voltou ao quintal. E voltou para lembrar que, na lógica de Washington, a América Latina nunca deixou de ser sua zona de influência.
O Brasil no epicentro da disputa

Por que o Brasil virou alvo explícito da coerção americana? Não é apenas por causa do julgamento de Bolsonaro ou da regulação das redes sociais. É porque o país ocupa hoje o lugar mais sensível no tabuleiro global: um gigante do Sul Global que ousou afirmar soberania em três frentes — geopolítica, tecnológica e informacional.
No Atlântico Sul, o Brasil controla rotas marítimas, tem a maior costa da região e construiu, com o PROSUB, a capacidade de operar submarinos convencionais de alta tecnologia. É a âncora natural da segurança marítima no hemisfério sul. Em organismos internacionais, tornou-se voz ativa da multipolaridade, puxando o BRICS para dentro da ONU, defendendo a Palestina e propondo um modelo alternativo ao unilateralismo americano. E, no campo digital, Brasília foi pioneira em enquadrar Big Techs, desafiando o coração da máquina de poder informacional dos EUA.
Washington enxerga isso com clareza. O tarifaço de 50% sobre exportações brasileiras não é mero ajuste comercial: é uma tentativa de impor custos ao projeto desenvolvimentista. As sanções contra Alexandre de Moraes não são apenas recado pessoal: são uma forma de tentar fragilizar a autoridade de instituições que resistem à desinformação digital. E a menção ao “poder militar” é a síntese: uma ameaça velada de que, se o Brasil insistir em ser soberano, enfrentará não só pressões econômicas, mas também estratégicas.
O calcanhar de Aquiles está na dependência militar-tecnológica. Os caças Gripen que patrulham o espaço aéreo brasileiro têm motores GE F414, fabricados nos EUA. Os cargueiros C-390 Millennium, orgulho da Embraer, dependem de motores V2500 produzidos em consórcio liderado por norte-americanos. Helicópteros navais Seahawk, mísseis anticarro Javelin e outros sistemas vitais estão atrelados às regras do ITAR, que dão a Washington o poder de embargar peças ou atrasar licenças a qualquer momento. Essa vulnerabilidade é uma arma silenciosa: não precisa de bombardeio para colocar esquadrões em terra, basta fechar a torneira das peças.
O Brasil é, assim, laboratório central da guerra híbrida. Porque aqui se cruzam todos os vetores da nova coerção: tarifas para sufocar a economia, sanções para atingir instituições, cadeias de defesa controladas à distância, campanhas digitais que tentam deslegitimar eleições e cortes, e, agora, a retórica militar que paira como sombra. Não é por acaso que a frase da porta-voz ecoou tão forte: ela nomeou aquilo que já está em curso.
Estamos no epicentro não porque escolhemos o conflito, mas porque decidimos, ainda que com hesitação, afirmar soberania em um mundo multipolar. E é esse gesto — defender a autonomia nacional contra as Big Techs, manter política externa altiva, reforçar a integração sul-americana e investir em satélites próprios — que transformou o Brasil no novo front da coerção global.
Guerra híbrida em três frentes

O que o Brasil enfrenta hoje não é uma guerra convencional, com tanques na fronteira ou frotas no horizonte. É algo mais sofisticado, mais insidioso e, por isso mesmo, mais perigoso: uma guerra híbrida total, conduzida em três frentes simultâneas — econômica, informacional e militar-técnica.
Primeira frente: a econômica.
O tarifaço de 50% imposto por Trump em julho não é mero ajuste de balança comercial. É um torniquete econômico para encarecer exportações brasileiras, desorganizar cadeias produtivas e fragilizar setores estratégicos. Ao mesmo tempo, a abertura de um processo na OMC contra o Brasil coloca o país como “réu” no tribunal do comércio internacional, mesmo quando o protecionismo parte de Washington. É a velha receita: criar dependência, impor custo e forçar o parceiro a negociar de joelhos.
Segunda frente: a informacional.
Aqui está o coração da guerra. Os EUA operam uma narrativa de “defesa da liberdade de expressão” que, na prática, serve de biombo para atacar o STF e deslegitimar a regulação das plataformas digitais. É a tática clássica da guerra cultural: transformar um debate legítimo sobre democracia e desinformação em rótulo de censura. Paralelamente, campanhas digitais inundam redes com vídeos fora de contexto — como supostas movimentações de navios ou boatos de intervenção militar — criando incerteza, medo e desconfiança. É a batalha pela mente das pessoas, travada em tempo real em cada celular.
Terceira frente: a militar-técnica.
Essa é a mais silenciosa, mas talvez a mais eficaz. O Brasil depende de cadeias controladas pelos EUA para manter parte decisiva de sua prontidão militar. Motores dos caças Gripen, turbinas dos C-390, sistemas de helicópteros navais e armamentos comprados via FMS — tudo isso pode ser travado com uma canetada em Washington. O instrumento legal chama-se ITAR, e dá ao Departamento de Estado o poder de aprovar ou negar qualquer reexportação, peça de reposição ou atualização de software. Não é preciso disparar um míssil: basta atrasar uma licença para que uma frota inteira fique em solo.
Quando olhamos as três frentes juntas, o desenho fica claro: tarifas sufocam a economia, sanções e narrativas corroem instituições, cadeias militares expostas viram alavanca silenciosa. Essa é a anatomia da guerra híbrida. Uma guerra que não declara guerra, mas que produz os mesmos efeitos: fragilizar a soberania, dividir a sociedade, e obrigar o país a ceder.
O desafio brasileiro é enxergar que essas frentes não estão isoladas — elas se reforçam. Cada vídeo viral falso alimenta a pressão política. Cada sanção alimenta o medo econômico. Cada dependência técnica vira instrumento de chantagem. Estamos diante de um ciclo integrado de coerção, desenhado para dobrar a espinha do Brasil sem precisar disparar um tiro.
Os militares brasileiros na encruzilhada

Nenhum setor sente a crise com tanta intensidade quanto as Forças Armadas. Isso porque o discurso americano de “usar poder militar” encontra eco direto na caserna: coloca a tropa no centro de uma disputa que não escolheu, mas da qual não pode escapar. O comportamento dos militares brasileiros, hoje, reflete essa encruzilhada entre pragmatismo, pressão política e vulnerabilidade estrutural.
A ativa e o discurso da cautela.
O Ministério da Defesa e os comandantes da ativa têm falado em tom de prudência. O ministro José Múcio insiste no reforço da vigilância na fronteira norte e no acompanhamento da crise Venezuela–Caribe. A Marinha, em particular, elevou o estado de atenção e o comandante Marcos Sampaio Olsen foi claro: “um distanciamento dos EUA traria dificuldades e não é desejável”. É a voz oficial de quem sabe que a prontidão da frota depende de cadeias de suprimento norte-americanas. Não há bravata na ativa — há pragmatismo. O objetivo é preservar neutralidade política, evitar o confronto aberto e garantir que o país não fique cego ou paralisado se a torneira de peças for fechada.
A reserva e a contaminação política.
Nas associações de oficiais da reserva, o tom é outro. Generais aposentados pressionam o comando do Exército a defender militares investigados no STF e se alinham a discursos bolsonaristas que denunciam “perseguição política”. Para esses setores, a crise externa é combustível para atacar as instituições internas, reforçando a narrativa de que o Brasil estaria sob “ameaça comunista” e precisaria reagir. É a velha guerra cultural infiltrada na caserna, usada como arma de pressão sobre o Alto Comando.
Os especialistas e o alerta estratégico.
Pesquisadores e analistas de defesa têm sido uníssonos: a vulnerabilidade brasileira não está apenas em discursos, mas em engrenagens. O motor GE F414 dos Gripen, o V2500 do C-390 e os sistemas adquiridos via FMS estão sob o guarda-chuva do ITAR. Em caso de escalada, Washington não precisa disparar um tiro — basta travar uma licença e a FAB perde disponibilidade. É por isso que especialistas alertam: sem estoques críticos, sem nacionalização de manutenção e sem diversificação de fornecedores, o Brasil corre o risco de ver sua defesa paralisada no momento em que mais precisar dela.
A encruzilhada.
Ativa, reserva e especialistas olham para a mesma crise por ângulos distintos. A ativa busca cautela, a reserva joga política, e os especialistas gritam alerta. Mas o dilema é comum: ou o Brasil fortalece sua autonomia militar, diversificando parcerias e internalizando tecnologia, ou seguirá refém de um aliado que hoje ameaça usar contra nós o poder econômico e militar. A caserna sabe que essa decisão não é apenas técnica — é de sobrevivência nacional.
A política interna como campo de batalha

A crise externa não fica do lado de fora dos quartéis ou do Itamaraty. Ela penetra no coração da política brasileira e se transforma em munição para 2026. O Brasil virou alvo da coerção americana, mas, ao mesmo tempo essa pressão é usada como arma interna — por políticos, por setores da mídia e pela extrema-direita digital.
O julgamento de Bolsonaro como gatilho.
O processo no STF sobre a trama golpista não é apenas jurídico. É o epicentro da crise. É ele que dá pretexto a Washington para falar em “defesa da liberdade de expressão”. É ele que mobiliza os militares da reserva em defesa dos réus fardados. E é ele que mantém a militância bolsonarista em estado permanente de mobilização nas redes. O que deveria ser um ato de soberania do Estado brasileiro virou peça no tabuleiro geopolítico.
Tarcísio e os generais.
No auge da tensão, Tarcísio de Freitas foi visto em Brasília em uma cerimônia com 16 novos generais — colegas de sua turma na AMAN. O gesto pode ser lido como mera formalidade, mas na política nada é neutro. Em meio à crise com os EUA e ao julgamento de Bolsonaro, essa imagem ecoou como recado: Tarcísio se apresenta como candidato da ordem, próximo da caserna, capaz de herdar o capital bolsonarista sem carregar os mesmos processos criminais. O Planalto leu a cena como alerta. As redes bolsonaristas, como aceno.
A extrema-direita digital em campo.
Não demorou para a máquina de desinformação transformar cada movimento em narrativa. O julgamento no STF virou “tribunal de exceção”. A fala da porta-voz de Trump foi celebrada como “apoio internacional à liberdade”. As tarifas foram apresentadas como “retaliação ao comunismo”. O objetivo é simples: criar caos interno, deslegitimar instituições e manter viva a chama do ressentimento até 2026. A guerra híbrida externa encontra, aqui, sua trincheira mais fértil: a disputa política nacional.
O risco da contaminação.
Quando a pressão externa se cruza com a disputa eleitoral, o país se torna terreno ainda mais instável. O que era estratégia de coerção global vira combustível para campanhas, hashtags e comícios. É nesse terreno que a extrema-direita aposta em transformar Bolsonaro em mártir e Tarcísio em alternativa viável, usando a crise com os EUA como pano de fundo para narrativas de soberania invertida: acusar o governo de ser “inimigo da liberdade” ao mesmo tempo em que a Casa Branca ameaça usar força contra o Brasil.
A política interna se converteu em campo de batalha da guerra híbrida. Não há mais fronteira entre a pressão vinda de Washington e as disputas do Planalto, do STF e das urnas. É nesse terreno contaminado que se decide não apenas o futuro de 2026, mas a própria capacidade do Brasil de resistir à coerção global.
O tabuleiro global se mexe

A crise Brasil–EUA não acontece num vácuo. Ela se insere em um tabuleiro global em movimento, onde grandes potências do Norte e do Sul estão reposicionando suas peças diante do novo front de coerção. Se Washington decidiu reacender sua presença no Caribe e no Atlântico, outros atores também se movem — e cada gesto deles redefine o espaço de manobra do Brasil.
China: a aposta mais concreta.
Em junho, o Brasil oficializou o CBERS-6, um satélite de sensoriamento remoto com radar de abertura sintética, em parceria com Pequim. Essa tecnologia é de dupla utilidade: serve tanto para monitoramento ambiental quanto para inteligência militar de todo-tempo. Ao mesmo tempo, o governo nomeou generais para postos de adidos em Pequim — gesto inédito, que sinaliza aprofundamento da cooperação militar. E, diante do tarifaço americano, a China se apressou em oferecer apoio político e novos canais comerciais, transformando-se na alternativa imediata de sustentação estratégica.
Rússia: o escudo político da Venezuela.
Em maio, Putin e Maduro assinaram um pacto de parceria estratégica. Isso não é retórica: é a demonstração de que Caracas tem retaguarda diplomática e militar em Moscou. Para o Brasil, significa que qualquer escalada americana no Caribe terá custo ampliado. O Atlântico Sul pode parecer distante de Moscou, mas a aliança russo-venezuelana aproxima o eixo euro-asiático das fronteiras brasileiras.
Índia e África: alternativas emergentes.
A Índia vinha discutindo com Brasília a venda de sistemas de defesa aérea Akash, mas as negociações perderam tração. Ainda assim, o país continua sendo opção importante para diversificação tecnológica fora da órbita do ITAR. Na África, a Marinha do Brasil mantém exercícios e parcerias em segurança marítima — movimentos discretos, mas que consolidam o Atlântico Sul como área de cooperação Sul-Sul, longe do guarda-chuva da OTAN.
Europa: gigante hesitante.
Enquanto os EUA impõem tarifas e falam em poder militar, a União Europeia mostra fragilidade. Pesquisas recentes indicam que cidadãos europeus enxergam acordos recentes com Washington como humilhações para o bloco. A UE, que poderia ser contrapeso, aparece paralisada, incapaz de oferecer ao Brasil mais do que retórica.
Sul Global como contrapeso.
O resultado é claro: enquanto os EUA usam coerção econômica e militar, é no Sul Global que o Brasil encontra espaço para respirar. China, Rússia, Índia e África oferecem alternativas de tecnologia, comércio e diplomacia. Não são caminhos livres de riscos, mas são a única forma de reduzir a vulnerabilidade estrutural a Washington.
O tabuleiro se mexeu. O império voltou ao quintal, mas o Sul Global também está em campo. A disputa pelo Brasil é a disputa pelo futuro da multipolaridade.
O risco real e imediato

Há quem pense que a ameaça americana contra o Brasil é sinônimo de frotas prontas para desembarcar ou bombardeios no Atlântico. Isso é ilusão. O risco verdadeiro não está na imagem clássica de guerra, mas em algo mais sutil, mais eficaz e mais devastador: o estrangulamento silencioso da soberania nacional.
O Brasil não precisa ser invadido para ser paralisado. Basta que peças de reposição de motores não cheguem. Basta que uma licença para atualizar software de sistemas de defesa seja negada. Basta que cadeias logísticas cruciais sejam travadas. Em semanas, esquadrões inteiros de Gripen podem ficar em terra, cargueiros C-390 sem turbinas, helicópteros da Marinha parados em hangares. Não é ficção: é a lógica do ITAR, a lei americana que dá a Washington poder de veto sobre qualquer item militar com tecnologia de origem dos EUA.
Ao mesmo tempo, a economia sofre a pressão de tarifas que encarecem exportações, reduzindo a margem de manobra fiscal e social. E, no campo informacional, o país é bombardeado diariamente por campanhas de desinformação, vídeos falsos de navios, narrativas de “censura” que corroem a confiança da população nas próprias instituições. A guerra híbrida não mata primeiro com balas — mata com incerteza, com medo, com paralisia.
O risco real é este: o Brasil ser empurrado para uma situação de asfixia controlada, sem que um único tiro seja disparado. Isso é ainda mais perigoso porque dissolve fronteiras entre paz e conflito, deixando o país permanentemente em estado de vulnerabilidade. A retórica militar de Washington é a superfície; a engrenagem verdadeira está na economia, na tecnologia e na mente das pessoas.
Não há mais dúvida: o Brasil já está sob ataque, não de tanques, mas de mecanismos invisíveis que corroem a capacidade de agir. A guerra não é anunciada no Jornal Nacional; ela se instala silenciosa, até que um dia percebemos que o país não decide mais nada por conta própria. Esse é o risco imediato: a perda de soberania sem que uma invasão jamais aconteça.
O que está em jogo: soberania ou submissão

Chegamos ao ponto central: o que está em jogo não é apenas um embate comercial, nem um ruído diplomático. O que está em jogo é se o Brasil será soberano ou submisso na ordem mundial que se reconfigura.
Soberania significa decidir por conta própria o destino nacional: julgar seus líderes sem aceitar pressões externas, regular suas plataformas digitais sem ser refém de Big Techs estrangeiras, definir suas cadeias de defesa sem pedir autorização a Washington. Submissão significa aceitar que sanções determinem a política interna, que tarifas redesenhem a economia e que cadeias de suprimento travadas paralisem a capacidade de defesa.
O dilema está colocado com clareza inédita. O Brasil é um país de dimensões continentais, com recursos estratégicos, biodiversidade única e um povo que sempre soube resistir. Mas também é um país dependente de insumos, de cadeias globais e de fluxos de capital. Essa contradição é o nó da nossa história: sermos gigantes em potencial e frágeis em engrenagens.
A frase da porta-voz de Trump foi só a face visível de uma engrenagem mais profunda: um sistema de coerção que mistura tarifas, sanções, retórica militar e guerra informacional. O que se busca não é nos invadir, mas nos enquadrar. O Brasil, ao afirmar soberania em temas como multipolaridade, defesa da Amazônia e regulação digital, se tornou alvo porque ousou dizer não.
O que está em jogo, portanto, é se conseguiremos sustentar esse não. Se teremos a coragem e a estratégia para transformar nossas vulnerabilidades em força, nossas alianças em proteção, e nossa soberania em realidade. Este é o teste de fogo da nossa geração: aceitar a submissão disfarçada de parceria, ou assumir de vez o risco de ser soberano.
Caminhos possíveis

Se a coerção já está em curso, qual é a saída? Não basta denunciar, é preciso desenhar caminhos concretos para reduzir vulnerabilidades e abrir novas frentes de soberania. A crise de hoje pode ser oportunidade de reorganizar prioridades nacionais.
Blindagem imediata.
O primeiro passo é pragmático: garantir estoques de peças críticas e ampliar a capacidade de manutenção no país. Motores de Gripen e C-390, softwares de sistemas sensíveis, helicópteros da Marinha e armamentos FMS — tudo isso precisa de buffer. Sem reservas estratégicas, o Brasil corre o risco de ver sua defesa paralisada com uma simples negativa de licença.
Diversificação estrutural.
A médio prazo, é imperativo romper com a lógica de dependência unilateral. Isso não significa romper com os EUA, mas reequilibrar. Programas como o CBERS-6 com a China, cooperação espacial e tecnológica com Índia, intercâmbios no Atlântico Sul com África e parcerias industriais com a Europa — mesmo enfraquecida — precisam ser acelerados. A regra é simples: quanto mais diversificada a rede de fornecedores e parceiros, menor o poder de veto de qualquer ator.
Guerra informacional ativa.
Não basta resistir no plano militar ou econômico se o país continuar vulnerável na arena digital. O Brasil precisa de uma estratégia nacional de comunicação e defesa informacional, capaz de responder rapidamente a boatos, expor operações de desinformação e educar a população para reconhecer narrativas manipuladas. Essa é a nova trincheira da soberania: proteger a mente do povo brasileiro.
Coalizão regional.
Nenhum país enfrenta sozinho um império. É hora de revitalizar mecanismos regionais como a UNASUL, a CELAC e os BRICS+, e propor uma zona de paz no Atlântico Sul. Isso não significa hostilidade gratuita, mas criar custos políticos para qualquer tentativa de coerção, mostrando que o Brasil não está isolado.
Reforço da soberania tecnológica.
A longo prazo, a saída definitiva passa por investir em infraestrutura própria: satélites nacionais, nuvem soberana de dados, indústria de semicondutores, software livre e aplicativos populares desenvolvidos localmente. A batalha decisiva é informacional e tecnológica: quem controlar os fluxos de dados e os algoritmos controlará a democracia.
Esses caminhos não são fáceis. Exigem investimento, coordenação política e coragem. Mas são possíveis. O que o 9 de setembro mostrou é que o preço da inação é a submissão. O Brasil tem uma janela histórica: transformar a crise em catalisador para uma soberania real.
Conclusão — A encruzilhada histórica

O dia 9 de setembro de 2025 não é apenas mais uma data no calendário político. É um divisor de águas. Foi o momento em que os Estados Unidos deixaram de falar em “parceria” e passaram a nomear o Brasil como alvo de coerção direta — econômica, informacional e até militar. É a oficialização de um jogo que já vinha sendo jogado silenciosamente e que agora está às claras: ou o Brasil se curva, ou o Brasil resiste.
Resistir não significa bravata. Significa estratégia. Blindar cadeias militares, diversificar fornecedores, ampliar cooperação no Sul Global, investir em soberania informacional, criar estoques críticos, preparar a sociedade para reconhecer e enfrentar campanhas de desinformação. Resistir significa compreender que a guerra híbrida é real, e que ela se trava tanto nas fronteiras quanto nas telas dos celulares, tanto nos portos quanto nas salas de audiência do STF.
A submissão, por outro lado, não virá com tanques em Brasília, mas com a corrosão lenta da autonomia nacional. Virá na forma de tarifas que destroem nossa competitividade, de sanções que fragilizam nossas instituições, de narrativas que dividem nosso povo, de licenças negadas que paralisam nossa defesa. É a morte da soberania por mil cortes, até que não reste nada além da administração à distância.
Estamos, portanto, diante de uma encruzilhada histórica. Se aceitarmos o enquadramento de Washington, abriremos mão de decidir nosso próprio destino. Se escolhermos a soberania, assumiremos riscos, mas também nos colocaremos como vanguarda de um mundo que pede multipolaridade e autonomia.
A história cobrará essa escolha. O 9 de setembro ficará registrado como o dia em que o Brasil foi nomeado novo front da coerção global. Cabe a nós decidir se será também o dia em que começamos a erguer, de forma consciente e estratégica, as trincheiras da resistência e da soberania.
Contam com o efeito de décadas de colonização cultural cognitiva, como bem apontou recente estudo de instituto chinês. https://bananasnews.noblogs.org/post/2025/09/10/brasil-sob-ataque/