Tarcisio, Motta, PCC e o Brasil no fio da navalha
- Rey Aragon

- 18 de set.
- 27 min de leitura

Mesmo com o STF e o Executivo tentando segurar a linha, Congresso, lobby econômico, pressões externas e radicalização digital corroem a base institucional do país.
O Brasil vive um momento de alerta máximo: enquanto setores da sociedade civil e parte das instituições lutam para manter o Estado de Direito, forças poderosas — do Congresso ao mercado, das big techs a pressões dos EUA — trabalham para fragilizar as estruturas democráticas. A anistia em debate no Legislativo é apenas o sintoma mais visível de uma disputa feroz que coloca em xeque a consolidação das instituições nacionais.
Introdução — O país suspenso pelo fio

O Brasil atravessa setembro de 2025 como quem caminha sobre um campo minado: cada passo dado pelas instituições carrega o risco de uma explosão política, digital ou até mesmo física. No dia 17, a Câmara dos Deputados aprovou, por 311 votos a 163, a urgência do PL 2.162/2023 — a chamada anistia dos envolvidos no 8 de janeiro. A decisão atropelou o debate público e sinalizou ao país que a autopreservação de lideranças parlamentares, articuladas por Hugo Motta, Valdemar Costa Neto e Sóstenes Cavalcante, pode se sobrepor à memória das cenas golpistas de dois anos atrás. No mesmo compasso, governadores como Tarcísio de Freitas foram a Brasília para inflamar a base bolsonarista em atos do 7 de Setembro, defendendo a anistia como “remédio para pacificar o Brasil”, quando na verdade abrem uma brecha institucional de corrosão.
Enquanto o Legislativo avança em manobras que tensionam a separação de poderes, o Supremo Tribunal Federal trava sua batalha própria. Em 11 de setembro, a Primeira Turma consolidou a condenação de Jair Bolsonaro a mais de 27 anos de prisão pela tentativa de golpe de Estado. O julgamento foi histórico, mas a resposta não tardou: campanhas digitais massivas com hashtags como #PECdaImpunidade, #Xandão, #dictatorship e #censorship inundaram as redes. No Telegram e no Rumble, lives emergenciais convocaram seguidores a resistirem ao “cerco judicial”. A cada voto registrado no STF, multiplicavam-se os memes, os ataques pessoais e as ameaças explícitas a ministros e jornalistas. O caso da prisão de suspeitos que ameaçaram a família de Alexandre de Moraes, no ano anterior, não serviu de freio: a engrenagem da violência digital voltou a girar com mais força.
No tabuleiro internacional, os EUA acrescentaram lenha ao incêndio institucional. A Casa Branca de Donald Trump anunciou tarifas de 50% sobre a maioria dos bens brasileiros, afetando diretamente o agro e a indústria de manufaturados. As exportações de carne, em especial, já registraram queda nas primeiras semanas após a medida. Como se não bastasse, ministros do STF viram seus vistos suspensos ou cancelados em plena semana da Assembleia Geral da ONU — uma clara mensagem de que a política doméstica brasileira está sob intervenção indireta. O recado foi inequívoco: o custo de condenar Bolsonaro não se limita ao território nacional.
O Executivo, por sua vez, tenta manter o fio de governabilidade enquanto segura a respiração diante da tempestade. Lula e a Casa Civil sabem que reagir com força contra o Congresso pode ser interpretado como autoritarismo, mas ceder significa legitimar a narrativa da impunidade. Haddad calcula os prejuízos de tarifas e o agro pressiona por negociações emergenciais, enquanto a base progressista exige resistência intransigente. É o dilema da corda bamba: qualquer passo em falso pode selar a imagem de um Executivo acuado, incapaz de coordenar soberania institucional.
Esse é o Brasil de setembro de 2025: um país suspenso pelo fio. STF e Executivo seguram as instituições na unha, enquanto Congresso, big techs, mídia extremada, setores do capital financeiro, lobbies transnacionais e fundamentalismos religiosos atuam como forças centrífugas, puxando na direção oposta da pacificação. A disputa não é apenas pelo destino de réus do 8 de janeiro, mas pela própria definição de que tipo de Estado democrático sobreviverá à ofensiva. A cada voto, a cada tarifa, a cada hashtag, o país avança mais um passo nesse campo minado, com o risco real de explosão institucional.
O Congresso em rota de colisão

O Legislativo brasileiro, em tese guardião da soberania popular, transformou-se em um bunker de autoproteção. A aprovação da urgência do PL 2.162/2023 não foi apenas um movimento procedimental: foi uma declaração política de guerra contra o Judiciário. Em 17 de setembro, a votação terminou com 311 deputados a favor e 163 contra, uma maioria confortável que revelou a musculatura da aliança entre PL, Republicanos, União Brasil e setores expressivos do Centrão. O discurso de Hugo Motta, presidente da Câmara, resumiu a lógica: anistiar não é sobre justiça, mas sobre “pacificação”. Traduzindo: blindar aliados, enterrar condenações e virar a página à força.
Essa “página virada” é, na verdade, a página rasgada da Constituição. O artigo 5º, XLIII da Carta de 1988 veda anistia para crimes hediondos e atos terroristas. A invasão de 8 de janeiro, com tentativa de sequestro de poderes, depredação da sede do Congresso, do STF e do Palácio do Planalto, enquadra-se perfeitamente como crime contra o Estado democrático de direito. Ainda assim, o Congresso se move como se pudesse reescrever a história: anistiar agora equivaleria a repetir o erro de 1979, quando a Lei da Anistia “perdoou” torturadores da ditadura sob o argumento de reconciliação nacional.
Nos bastidores, o avanço da anistia não se explica sem a lógica do toma-lá-dá-cá. Deputados do Centrão negociam emendas milionárias, ministérios e travamento de CPIs em troca de votos. Essa é a engrenagem real que moveu a PEC da Blindagem — aprovada em dois turnos na Câmara antes mesmo da votação da anistia — que amplia as prerrogativas parlamentares e dificulta a responsabilização criminal de deputados e senadores. O recado é cristalino: o Congresso quer se tornar um poder insulado, imune às consequências de crimes, às decisões judiciais e até ao julgamento da opinião pública.
Valdemar Costa Neto, veterano do fisiologismo, articula sua tropa do PL com pragmatismo cínico: sabe que a sobrevivência política de Bolsonaro e de sua própria máquina partidária depende da anistia. Sóstenes Cavalcante, líder evangélico, mobiliza sua base sob linguagem religiosa de perdão, transformando crimes contra a democracia em metáforas de “salvação nacional”. Zucco, figura da linha de frente bolsonarista, coloca lenha nas convocações de rua. Todos, em uníssono, operam como engrenagem de uma ofensiva que deslegitima o STF, sufoca o Executivo e neutraliza a responsabilização penal.
O Senado, historicamente tratado como “casa de freio”, tornou-se parte da equação. Arthur Lira na Câmara e Rodrigo Pacheco no Senado medem os custos de deixar a anistia correr solta, mas as pressões externas — mercado, agro e big techs — funcionam como combustível. “Pacificação” é palavra-chave nas notas de líderes partidários e nas falas em plenário, mas o que se negocia é pacificação para os de cima, não para as instituições democráticas ou para o povo.
Exemplos recentes escancaram a distorção. Em 2023, quando o STF julgava casos de financiadores dos atos golpistas, o Congresso reagiu com projetos que tentavam limitar o alcance da Corte. Em 2024, durante o embate sobre a regulação das plataformas digitais, a Câmara transformou o PL 2630 em moeda de troca com as big techs, cedendo ao lobby em nome de financiamento eleitoral. Agora, em 2025, o mesmo Congresso acelera a anistia de golpistas, mesmo diante da condenação histórica de um ex-presidente da República. É um padrão: o Legislativo atua não como contrapoder democrático, mas como força de bloqueio ao avanço da responsabilização e como sócio do capital interessado em desestabilizar o país.
O Congresso, nesse sentido, não está em rota de colisão apenas com o STF. Está em rota de colisão com a própria noção de Estado democrático de direito. Ao transformar a anistia em moeda de autopreservação, ao blindar seus próprios membros e ao ceder às pressões de mercado e de lobbies, a instituição que deveria representar o povo atua como agente ativo da corrosão institucional.
STF: garantismo no topo, descompasso na base

À primeira vista, o Supremo Tribunal Federal aparece como bastião de resistência democrática. Foi a Corte que condenou Jair Bolsonaro a 27 anos de prisão pela tentativa de golpe de Estado, que sustentou investigações sobre redes digitais de ódio, que impôs multas milionárias às plataformas e que, em julgamentos recentes, reafirmou a centralidade do Estado democrático de direito. Essa face pública do STF, transmitida em tempo real e reverberada pela imprensa, cria a impressão de que a Justiça brasileira estaria cumprindo com vigor sua função garantista. Mas essa leitura é enganosa.
O STF é apenas o vértice de uma pirâmide judicial que se estende pelos quatro cantos do país — e, nesse território, a realidade é bem diferente. O Censo do Poder Judiciário revela uma magistratura 80% branca, 64% masculina, fortemente concentrada em elites socioeconômicas. Poucos filhos de trabalhadores, menos ainda de negros e pobres. Isso ajuda a explicar por que a base do Judiciário muitas vezes funciona como correia de transmissão do conservadorismo, mais próxima do ethos da extrema-direita do que da defesa intransigente da Constituição de 1988.
Os exemplos são eloquentes. Em Santa Catarina, uma juíza tentou convencer uma criança de 11 anos, vítima de estupro, a manter a gravidez, apesar de o aborto estar garantido pela lei em casos de violência sexual. Em Goiás, magistradas restringiram acesso ao procedimento de interrupção legal, agindo contra parâmetros estabelecidos pelo próprio STF. Apenas depois de intensa pressão social e de correições do CNJ essas situações receberam censura. Mas o dano já estava feito: decisões judiciais que negam direitos fundamentais a mulheres e crianças em situação de vulnerabilidade.
Outro caso paradigmático: a demora de anos para implementar o juiz de garantias, previsto na Lei 13.964/2019. A medida, que separa o magistrado da investigação do juiz que julga o mérito, visava reduzir parcialidades. O STF manteve sua suspensão por liminares sucessivas, e apenas em 2023 iniciou a implementação escalonada. Enquanto isso, tribunais estaduais resistiram, alegando “falta de recursos”. O resultado foi a perpetuação de um modelo concentrador, em que o mesmo juiz conduz a investigação e profere a sentença — abrindo espaço para vieses, seletividade e arbitrariedades.
E há a questão estrutural do encarceramento em massa. As audiências de custódia, criadas em 2015, reduziram parcialmente a prisão provisória, mas não reverteram a lógica punitivista da magistratura. Mais de 59% das apresentações terminam em preventiva, e a população carcerária brasileira continua entre as maiores do mundo, composta em sua maioria por jovens, negros e pobres. O garantismo do STF não chegou às celas superlotadas.
Se o STF representa, em sua narrativa pública, a muralha contra o golpismo, o Judiciário nacional funciona como um mosaico fragmentado, em grande medida colonizado por conservadorismo e marcado por privilégios de casta. É essa contradição que expõe a fragilidade das instituições: um tribunal de cúpula que aplica garantias constitucionais, mas um corpo judicial de base que frequentemente age como instrumento da ordem estabelecida e da repressão seletiva.
Esse descompasso é perigoso. Quando o STF atua para conter a ofensiva bolsonarista, não significa que a Justiça como um todo esteja cumprindo seu papel democrático. Pelo contrário: em muitas regiões, juízes, promotores e desembargadores reproduzem o ethos das elites que sempre dominaram o sistema, legitimando perseguições políticas, criminalizando movimentos sociais e sustentando um modelo punitivista que alimenta a desigualdade estrutural. A “vitória” do STF em Brasília, portanto, é apenas uma face da moeda — e não prova que a justiça brasileira seja confiável como pilar de democracia.
O Executivo encurralado

Se o STF ocupa a linha de frente visível da resistência, o Executivo vive a guerra no bastidor e no campo simbólico. Lula governa em um tabuleiro minado: cada gesto em defesa das instituições é lido como autoritarismo; cada recuo é interpretado como fraqueza. Essa é a armadilha perfeita para quem busca manter a governabilidade em meio a uma tempestade que envolve Congresso, mercado, mídia extremada, pressões internacionais e um ambiente digital envenenado.
O caso mais imediato é a anistia. A aprovação da urgência do PL 2.162/2023 foi uma derrota política silenciosa para o Planalto. Apesar do esforço da Casa Civil para articular votos contrários, a base governista rachou. Deputados de partidos do arco progressista se dividiram, alguns cedendo ao discurso de “pacificação” vendido pelo Centrão. O Planalto, que já enfrentara situação semelhante na votação da PEC da Blindagem, viu-se diante de uma realidade dura: mesmo com ministérios, emendas e cargos, não há como controlar a engrenagem de autoproteção legislativa.
Enquanto isso, o impacto das tarifas de 50% impostas pelos EUA acendeu o alerta no Ministério da Fazenda e na Agricultura. Fernando Haddad convocou reuniões emergenciais com representantes do agro, que já sentem a queda nas exportações de carne. Carlos Fávaro, pressionado pelos grandes frigoríficos, pediu ação imediata do Itamaraty. Lula sabe que qualquer concessão pode ser lida como fraqueza diante da pressão internacional, mas também não pode ignorar o custo político de um setor estratégico em ebulição. O Executivo está encurralado entre defender soberania institucional e administrar prejuízos econômicos que corroem sua base social.
A tensão também se manifesta na rua. Os atos do 7 de Setembro foram usados por governadores alinhados ao bolsonarismo para pressionar o governo federal. Em São Paulo, Tarcísio de Freitas subiu ao palanque defendendo a anistia como “remédio para pacificar o Brasil”, em clara afronta ao STF e ao próprio Executivo. Lula, por sua vez, tentou ressignificar a data com o desfile oficial em Brasília, destacando as Forças Armadas como instituições da democracia. Mas a assimetria de narrativas mostrou-se evidente: de um lado, o governo tentando projetar moderação e estabilidade; de outro, a oposição transformando as ruas em arena de confronto simbólico contra a responsabilização.
No ambiente digital, a pressão é ainda mais aguda. Hashtags como #LulaDitador e #PECdaImpunidadeJá circulam lado a lado, criando um campo de distorção onde o governo é pintado simultaneamente como opressor e como cúmplice da impunidade. O Planalto, que já enfrentou o desgaste da batalha do PL 2630 em 2024, sabe que está em desvantagem. As plataformas digitais seguem funcionando como terreno hostil, blindadas pelo lobby das big techs e pela ausência de regulação robusta. Qualquer tentativa de ação mais dura — como as medidas do STF contra o X/Twitter — é atribuída a Lula e amplificada como “censura”.
Esse cerco gera uma contradição estratégica: Lula é visto globalmente como estadista e líder multipolar, mas internamente sofre ataques constantes que corroem sua autoridade simbólica. É o presidente que discursará na ONU defendendo soberania informacional e multilateralismo, mas que no Congresso brasileiro precisa lidar com derrotas sucessivas impostas por uma maioria conservadora. É o líder que busca reindustrializar o país, mas que precisa negociar com o agronegócio pressionado por tarifas externas.
O Executivo, assim, está encurralado não apenas por forças externas, mas pela lógica interna de um sistema político que se move para enfraquecê-lo. A cada derrota no Congresso, a cada tarifa anunciada, a cada trending hashtag, o Planalto se vê obrigado a recalibrar sua posição entre a prudência institucional e a necessidade de se afirmar como guardião da democracia. Essa corda bamba é talvez o maior risco: se pender demais para a moderação, pode legitimar a impunidade; se pender demais para a reação, pode alimentar a narrativa de autoritarismo. O jogo é de sobrevivência — e cada movimento errado pode custar não apenas apoio político, mas a própria legitimidade do governo como âncora da estabilidade nacional.
O ambiente digital como campo de batalha

Se o Congresso atua nas manobras regimentais e o STF trava sua resistência jurídica, é no campo digital que a guerra pela narrativa se decide. O Brasil, desde 2018, tornou-se um dos maiores laboratórios de manipulação política em redes sociais, e setembro de 2025 mostra que esse laboratório se aperfeiçoou, incorporando novas tecnologias e táticas de desinformação. A esfera digital já não é apenas reflexo da política: é o terreno onde a violência simbólica se ensaia para depois se tornar violência física.
As hashtags são o front visível da batalha. Em questão de horas após a condenação de Jair Bolsonaro no STF, termos como #PECdaImpunidade, #Xandão, #LulaDitador e #censorship dominaram o X (antigo Twitter). Relatórios da SaferNet e de laboratórios acadêmicos como o NetLab/UFRJ mostram que esses trending topics não são espontâneos: há uso coordenado de bots, fazendas de perfis falsos e redes de contas troll que impulsionam a mesma narrativa em ciclos de 6 a 12 horas. A estratégia é clara: transformar o debate institucional em espetáculo de guerra cultural, criando a ilusão de que “o povo” pede anistia e acusa o STF de tirania.
Lives emergenciais no YouTube e no Telegram funcionam como postos de comando da insurgência digital. Deputados bolsonaristas e influenciadores extremistas entram ao vivo assim que uma decisão é proferida no STF. O modelo é conhecido: uma notícia é distorcida em tempo real, um ministro é transformado em vilão, e seguidores são incitados a “resistir” — seja inundando redes com hashtags, seja marcando atos nas capitais. Essa lógica já foi vista em 2022, com as convocações para bloqueios de rodovias, e em 2023, com as marchas pela anistia. Agora, em 2025, o grau de radicalização subiu um degrau: as mensagens incluem ameaças explícitas de morte contra ministros e jornalistas, configurando um ambiente de violência que transborda da tela para as ruas.
Casos concretos escancaram esse risco. Em 2024, a Polícia Federal prendeu suspeitos de ameaçar a família de Alexandre de Moraes; mesmo assim, em 2025, novos vídeos circulam no Rumble prometendo “justiçamento” contra parlamentares progressistas. A FENAJ contabilizou 144 agressões a jornalistas em 2024, muitas delas precedidas por campanhas digitais de ódio. O Conselho Nacional do Ministério Público, ao lado da SaferNet, firmou acordo em 2025 para tentar conter esse tsunami de violência online. Mas o efeito até agora é limitado: a engrenagem da desinformação é mais rápida e mais bem financiada do que a capacidade de resposta institucional.
As big techs, longe de serem árbitras neutras, são parte do problema. O PL 2630, conhecido como PL das Fake News, foi derrotado em 2024 após um lobby feroz de empresas como Google e Meta, que mobilizaram anúncios, pressionaram creators e até interferiram em resultados de busca. O Artigo 19 do Marco Civil da Internet continua funcionando como escudo: as plataformas só são obrigadas a remover conteúdos mediante ordem judicial específica, o que cria um gargalo operacional diante de ataques em escala industrial. O STF já sinalizou a necessidade de rever esse modelo, mas enfrenta resistência não apenas das empresas, como também de bancadas parlamentares financiadas por elas.
Esse campo digital não é apenas tático, é estratégico. Ele cria três efeitos concretos:
Normalização da violência — quando hashtags com ameaças circulam livremente, agredir jornalistas ou intimidar ministros passa a ser visto como ato político legítimo.
Internacionalização da narrativa — hashtags em inglês (#dictatorship, #censorship) miram a mídia internacional, buscando enquadrar o STF como censor e o Brasil como ditadura.
Produção de clima de impunidade — quanto mais se grita “anistia já”, mais se constrói a sensação de que punir golpistas é injusto.
Não é coincidência que essa guerra digital ocorra ao mesmo tempo em que o Congresso vota a anistia. São linhas paralelas de um mesmo projeto: no Parlamento, o movimento formal para apagar crimes; na internet, o espetáculo para legitimar esse apagamento. O campo digital, assim, funciona como a infantaria de choque da política, pressionando instituições, intimidando opositores e preparando o terreno para rupturas institucionais.
O ambiente digital brasileiro é hoje um dos maiores campos de batalha do planeta. É nele que se testam as táticas de desinformação, a fusão entre religião e política, a monetização do ódio e o alinhamento com redes internacionais de extrema-direita. E enquanto não houver uma regulação robusta e enforcement ágil, cada decisão do STF, cada movimento do Executivo, cada votação no Congresso será imediatamente capturada, distorcida e devolvida como combustível para a conflagração.
O pacto federativo sob ataque

A Constituição de 1988 estabeleceu a forma federativa como cláusula pétrea (art. 60, §4º, I), protegida de mudanças mesmo por emenda constitucional. O desenho buscou garantir equilíbrio entre União, estados e municípios, de modo a impedir que lideranças regionais operassem como forças centrífugas contra a ordem nacional. Em setembro de 2025, esse pacto federativo está sendo tensionado até o limite — e não por acaso.
O caso mais emblemático é o do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Ele assumiu papel central na narrativa pró-anistia, não apenas no discurso, mas também na ação direta. No 7 de Setembro, subiu ao palanque em São Paulo defendendo a anistia como “remédio para pacificar o Brasil”. Dias depois, foi a Brasília para se reunir com lideranças do Congresso e inflamar a base bolsonarista em favor da aprovação relâmpago do PL 2.162/2023. O gesto não foi simbólico: foi político e institucional, configurando um governador atuando contra decisões do STF e em choque com a própria União.
Essa atuação tem precedentes. Em 2023, governadores da Amazônia entraram em rota de colisão com o governo federal em disputas sobre exploração de petróleo na Margem Equatorial. Em 2024, o governador de Roraima usou a crise energética como palanque para atacar o Executivo e o STF, acusando-os de “bloquear o desenvolvimento”. Mas o caso de Tarcísio vai além: ele não apenas critica, mas se articula ativamente com bancadas bolsonaristas no Congresso para esvaziar as consequências jurídicas do 8 de janeiro, algo inédito no pós-redemocratização.
Exemplos de ruptura federativa se multiplicam. Em 2022, o então governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, foi afastado por omissão diante da invasão dos Três Poderes — uma demonstração de como elites locais podem colidir com instituições federais em momentos críticos. Em 2023, governadores aliados de Bolsonaro convocaram atos contra decisões do STF, transformando palácios estaduais em trincheiras políticas. Agora, em 2025, essa tendência se cristaliza em Tarcísio: o estado mais rico e populoso do país, com peso econômico e simbólico desproporcional, engajado em fragilizar o equilíbrio institucional.
A história brasileira mostra o perigo dessa dinâmica. Em 1961, governadores como Leonel Brizola, com a Cadeia da Legalidade, se insurgiram para garantir a posse de João Goulart. Mas ali, a mobilização foi em defesa da legalidade. Em 1964, setores estaduais — alinhados às Forças Armadas e ao empresariado — apoiaram ativamente o golpe. O que vemos hoje ecoa mais 1964 do que 1961: governadores funcionando como plataforma para desestabilizar o poder central, em nome de agendas que fragilizam a democracia.
O risco é duplo. Primeiro, institucional: quando um governador atua abertamente para deslegitimar o STF e pressionar o Congresso em direção à impunidade, ele rompe a lógica da cooperação federativa e abre espaço para conflitos abertos entre entes federados. Segundo, simbólico: ao discursar diante de multidões, Tarcísio empresta verniz de legitimidade estatal ao golpismo digital e parlamentar, transformando uma pauta de autoproteção em suposta demanda “do povo”.
Esse ataque ao pacto federativo não é detalhe. É engrenagem estratégica. Ao mobilizar o peso de São Paulo, Tarcísio oferece cobertura institucional para o discurso da extrema-direita, inflando as ruas, pressionando parlamentares e enfraquecendo a autoridade do STF e do Executivo. É a federação sendo usada como arma contra si mesma — um movimento que, se não for contido, pode aprofundar rupturas e acelerar a erosão do Estado democrático de direito.
A mídia extremada e as trincheiras da informação

Se as redes sociais funcionam como trincheiras digitais de ataque imediato, a mídia extremada atua como artilharia de longo alcance, moldando percepções e legitimando o golpismo sob a roupagem de jornalismo. Jovem Pan, Brasil Paralelo e uma constelação de canais digitais cumprem esse papel com disciplina estratégica, operando como correias de transmissão do discurso de que o STF é tirano, de que Lula é ilegítimo e de que a anistia é necessária para a “pacificação nacional”.
A Jovem Pan tornou-se símbolo desse processo. Desde 2019, quando abraçou abertamente a linha editorial bolsonarista, deixou de ser apenas uma emissora de rádio e se converteu em plataforma política. Em 2023, o Ministério Público Federal ingressou com ação pedindo a cassação de sua concessão, acusando a empresa de transformar sua grade em propaganda sistemática contra as instituições democráticas. Mesmo assim, a emissora seguiu funcionando como palco diário para ataques contra o STF e o Executivo. Seus comentaristas repetem a narrativa de perseguição e censura, alimentando hashtags e convocações digitais. O efeito cascata é evidente: um ataque lançado no estúdio da Jovem Pan reverbera no X, é replicado em grupos de WhatsApp e Telegram e, em poucas horas, se torna trending topic nacional.
A Brasil Paralelo opera em outra chave, mais sofisticada. Com estética cinematográfica e narrativa histórica distorcida, a produtora cria documentários e séries que ressignificam a memória nacional. Um exemplo foi o especial sobre o 8 de janeiro, lançado em 2024, que descrevia os atos como “protestos patrióticos reprimidos pelo autoritarismo do STF”. O conteúdo circulou amplamente em escolas privadas, associações empresariais e até em igrejas, mostrando a capacidade da Brasil Paralelo de penetrar ambientes formativos. Em 2025, novas denúncias apontaram falsificação de documentos em produções da empresa, mas isso não reduziu sua influência: ao contrário, reforçou a narrativa de perseguição.
O ecossistema inclui ainda canais digitais menores, mas articulados, como Foco do Brasil e Terça Livre (mesmo sob processos), que replicam pautas e operam como satélites de amplificação. Em comum, todos esses veículos produzem um ambiente de trincheira informacional, no qual o golpismo se apresenta como defesa da liberdade e a violência institucional é normalizada como resistência legítima.
Esse fenômeno tem raízes históricas. Em 1964, jornais como O Globo e o Estado de S. Paulo foram protagonistas na legitimação do golpe militar, mobilizando editoriais em defesa da “redentora”. Hoje, a mídia extremada cumpre papel análogo: legitima a anistia como pacificação, apresenta o STF como ditadura e transforma investigados em mártires. A diferença é que, agora, a capilaridade é incomparavelmente maior. Uma live da Jovem Pan ou um documentário da Brasil Paralelo podem alcançar milhões em poucas horas, retroalimentados por algoritmos que premiam engajamento com ódio e polarização.
Esse ataque informacional não é periférico: é estratégico. Ele molda a opinião pública que pressiona parlamentares, dá combustível para governadores como Tarcísio inflamarem suas bases e fornece munição simbólica para as redes digitais amplificarem narrativas. Quando um comentarista da Jovem Pan chama o STF de “ditadura togada”, ou quando um documentário da Brasil Paralelo romantiza o 8 de janeiro, não se trata de opinião isolada: é a construção de trincheiras permanentes de deslegitimação institucional.
O resultado é corrosivo. As instituições brasileiras não disputam apenas no Congresso ou nos tribunais: disputam sua própria sobrevivência no campo da informação. E, enquanto a mídia extremada seguir operando como braço de guerra híbrida, a democracia seguirá exposta a ataques constantes — não mais apenas nas ruas, mas nas consciências.
O capital financeiro e o agro como players políticos

Na superfície, o discurso da anistia parece restrito ao campo político-partidário. Mas basta observar o comportamento dos mercados e das federações do agro para entender que a disputa pela impunidade dos golpistas também é uma disputa econômica. Faria Lima e agronegócio não assistem como espectadores: operam como players centrais, modulando narrativas, pressionando instituições e calibrando o custo da democracia no Brasil.
O mercado financeiro tem mostrado seu poder pela linguagem da volatilidade. Após a aprovação da urgência da anistia, o Ibovespa recuou 2,7% e o dólar bateu R$ 5,42 em menos de 24 horas. Analistas de grandes bancos, em relatórios internos que rapidamente vazaram para a imprensa, disseram que a medida poderia “pacificar o ambiente político e reduzir riscos de instabilidade”. A mensagem é clara: parte significativa do mercado prefere a impunidade a um cenário prolongado de instabilidade institucional. Não por acaso, em 2024, executivos do BTG Pactual e do Bradesco já haviam sinalizado a parlamentares que a “paz social” deveria guiar as decisões do Congresso — um eufemismo para anistia.
O agronegócio atua de forma ainda mais explícita. As tarifas de 50% impostas pelos EUA sobre exportações brasileiras atingiram diretamente as cadeias de carne, soja e milho. A Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (ABIEC) emitiu nota afirmando que “o ambiente político precisa ser pacificado para destravar negociações comerciais”. Frigoríficos como JBS e Marfrig pressionaram o Ministério da Agricultura a “dialogar com o Congresso” para evitar que a crise política atrapalhasse as exportações. O recado é inequívoco: para o agro, a democracia é variável secundária frente à fluidez dos mercados.
Esse padrão tem longa história. Em 1964, setores empresariais do Sudeste financiaram marchas da “Família com Deus pela Liberdade” e apoiaram o golpe militar em nome da “estabilidade econômica”. Em 2016, a Fiesp transformou sua sede em painel luminoso com o pato amarelo, simbolizando o apoio empresarial ao impeachment. Hoje, em 2025, o mesmo mecanismo se repete com novos atores: Faria Lima e agro exigem “pacificação” e naturalizam a anistia como preço aceitável para manter seus fluxos de capital.
Há ainda a conexão internacional. Gestores de fundos como BlackRock e Vanguard, com presença maciça no Brasil, olham para o país como ativo de risco. Qualquer movimento do STF que pareça “radical” contra o bolsonarismo é lido como instabilidade, reduzindo investimentos. A lógica é perversa: o capital global, sob o pretexto de racionalidade, pressiona pela desdemocratização, desde que isso garanta previsibilidade no curto prazo.
Os exemplos de captura são múltiplos. Em 2023, o setor de mineração pressionou o Congresso para flexibilizar normas ambientais após embates com o STF sobre terras indígenas. Em 2024, o lobby financeiro foi decisivo para travar a regulação das plataformas digitais, já que bancos e corretoras dependem da publicidade em massa veiculada nessas redes. Agora, em 2025, o agro e a Faria Lima unem-se na defesa da anistia, não por convicção ideológica, mas porque a instabilidade institucional ameaça seus lucros.
Esse movimento mostra que o capital não é neutro. Ele atua como força política organizada, com instrumentos de pressão — câmbio, bolsas, relatórios, notas oficiais — capazes de reconfigurar o debate público. O que está em jogo, portanto, não é apenas a anistia de golpistas, mas a própria lógica de captura institucional por setores econômicos que transformam democracia em variável descartável.
Pressões externas e lobbies transnacionais

O Brasil não enfrenta apenas um conflito interno entre poderes. A crise institucional é atravessada por pressões externas e lobbies transnacionais que atuam como verdadeiras forças de desestabilização. O país está no epicentro de uma disputa que envolve interesses geopolíticos dos EUA, influência de Israel, poder das big techs e atuação coordenada de think tanks e organizações privadas internacionais.
O caso mais imediato é a ofensiva dos Estados Unidos. Sob a gestão de Donald Trump, a Casa Branca intensificou a retaliação contra o governo Lula, elevando tarifas de importação para 50% em diversos setores estratégicos. O impacto foi imediato: queda nas exportações de carne e produtos manufaturados, nervosismo na Faria Lima e pressão de associações empresariais sobre o Planalto. Além disso, houve a suspensão e cancelamento de vistos de ministros do STF, justamente às vésperas da Assembleia Geral da ONU. O recado foi nítido: se o Brasil insiste em condenar Bolsonaro e sustentar sua soberania institucional, pagará o preço em sua relação com o maior mercado do hemisfério.
Outro vetor é o lobby de Israel. Desde os embates de 2023 sobre a política externa brasileira em defesa da Palestina, o governo de Benjamin Netanyahu e sua rede de apoiadores têm atuado em frentes paralelas. Deputados da bancada evangélica intensificaram discursos pró-Israel, vinculando anistia e defesa da “liberdade religiosa” à necessidade de apoiar Tel Aviv. Universidades e eventos empresariais no Brasil receberam financiamento de entidades alinhadas ao governo israelense, em troca da promoção de uma agenda política que enfraquece a crítica à extrema-direita. Esse movimento se conecta diretamente ao discurso fundamentalista que circula nas igrejas e nas trincheiras digitais.
As big techs são outro eixo central dessa pressão transnacional. Em 2024, o Google mobilizou sua página inicial contra o PL 2630, distorcendo o debate sobre regulação de plataformas. A Meta financiou campanhas disfarçadas em associações de influenciadores. A lógica se repete em 2025: as empresas resistem a qualquer tentativa de responsabilização pelo ódio digital e tratam decisões do STF como “censura”. Relatórios de transparência incompletos, lobby direto no Congresso e articulação com parlamentares bolsonaristas reforçam a blindagem das plataformas. O efeito prático é devastador: a engrenagem da desinformação permanece intacta, alimentada por interesses corporativos globais.
Esses ataques não são isolados. Eles compõem um mosaico de pressão externa que fragiliza o Brasil por dentro. Enquanto o Executivo e o STF tentam manter a linha, o país é alvejado por tarifas, campanhas de lobby e redes internacionais de extrema-direita que veem na instabilidade brasileira um terreno fértil para seus projetos. A história mostra que não é novidade: em 1964, os EUA financiaram setores golpistas sob o pretexto de conter o comunismo. Hoje, em 2025, o discurso mudou, mas a prática é semelhante: conter um Brasil soberano, punir quem ousa desafiar a hegemonia e garantir que a democracia se mantenha tutelada por interesses externos.
O resultado é um cenário em que a luta institucional brasileira não se trava apenas dentro das fronteiras. O STF pode condenar, o Executivo pode resistir, mas, sem enfrentar as pressões externas e o lobby transnacional, o país continuará exposto a uma engrenagem de sabotagem que atravessa economia, diplomacia, religião e tecnologia.
O fundamentalismo religioso na política

Se o Congresso atua em manobras regimentais, o STF em resistência jurídica e o capital em pressão econômica, o fundamentalismo religioso cumpre o papel de cimento ideológico da extrema-direita. Ele transforma crimes contra a democracia em metáforas de redenção e ressignifica a anistia como ato de perdão divino. Essa fusão entre religião e política não é periférica: é central na corrosão institucional que o Brasil enfrenta.
O caso mais evidente é o da Frente Parlamentar Evangélica (FPE). Com mais de 200 parlamentares, trata-se de uma das bancadas mais poderosas do Congresso. Lideranças como Sóstenes Cavalcante e Marcos Feliciano colocaram a anistia na pauta como se fosse “um gesto cristão de reconciliação nacional”. Em eventos transmitidos por YouTube e cultos televisionados, repetem o refrão: “Se Deus perdoa, por que o Estado não deve perdoar?”. Essa manipulação teológica converte um crime contra a democracia em narrativa de “pecado redimido” — um recurso político eficaz para mobilizar massas.
Pastores midiáticos como Silas Malafaia e R. R. Soares atuam como amplificadores desse discurso. Malafaia, em especial, tem chamado fiéis a pressionar deputados pela aprovação da anistia, usando a retórica de guerra espiritual contra o STF. Seus vídeos chegam a milhões de visualizações e circulam em grupos de WhatsApp de igrejas pentecostais. O resultado é a fusão entre púlpito e palanque: a fé transformada em combustível político, legitimando a desestabilização institucional.
Esse fenômeno não é novo. Em 2016, durante o impeachment de Dilma Rousseff, parlamentares evangélicos justificaram seus votos “em nome de Deus e da família”. Em 2018, a eleição de Jair Bolsonaro contou com apoio decisivo de líderes religiosos que o apresentavam como “escolhido por Deus” para livrar o país do comunismo. Em 2023, quando o STF discutia a descriminalização do aborto até 12 semanas, cultos e mobilizações religiosas foram usados como trincheiras contra a Corte. Agora, em 2025, o mesmo mecanismo é aplicado para blindar os golpistas de 8 de janeiro.
O risco é que essa lógica cria um Estado paralelo de legitimidade. Enquanto a Constituição estabelece limites claros — como o artigo 5º, que define a democracia como cláusula pétrea — a retórica religiosa cria um campo em que leis humanas são subordinadas à “lei divina”. Nesse campo, ministros do STF são tratados como inimigos espirituais, o Executivo é acusado de ser “servo das trevas” e o Congresso é pressionado a legislar em nome de uma suposta vontade de Deus.
Os exemplos se multiplicam. Em agosto de 2025, a Convenção Nacional das Assembleias de Deus aprovou uma resolução pedindo “paz nacional via anistia”, entregue simbolicamente a deputados em Brasília. Em setembro, cultos em megatemplos de Goiânia e Belo Horizonte exibiram vídeos atacando o STF e pedindo que fiéis pressionassem senadores. Não se trata de fé individual, mas de um projeto político-teocrático que enfraquece as instituições seculares.
Esse fundamentalismo religioso atua em sinergia com o bolsonarismo digital e com a mídia extremada, criando uma rede de legitimação simbólica. Nas redes, hashtags como #PerdãoJá e #AnistiaCristã ganharam tração, ecoando sermões de púlpito. Nos plenários, deputados evangélicos repetem o discurso da reconciliação divina. Nas ruas, fiéis mobilizados por pastores transformam manifestações em atos litúrgicos. O resultado é a dissolução das fronteiras entre religião e Estado — e, com isso, a corrosão do pacto democrático.
O fundamentalismo religioso, portanto, não é apenas um ator cultural. É um braço político de alta potência, que sustenta a narrativa da anistia, fragiliza o STF, pressiona o Executivo e fornece à extrema-direita uma linguagem capaz de mobilizar milhões. Sem compreender esse vetor, não é possível entender a profundidade da ameaça institucional que o Brasil enfrenta em 2025.
Cenários de risco e projeções estratégicas

O Brasil atravessa setembro de 2025 como quem caminha em terreno movediço, onde cada decisão institucional pode acionar uma sequência de eventos capazes de alterar o rumo do país em questão de horas. A escalada segue uma lógica própria, já conhecida desde o 8 de janeiro: primeiro, os ataques digitais massivos, depois as convocações para as ruas e, por fim, a possibilidade de violência localizada. Nas primeiras horas após uma decisão ou votação, o campo digital se inflama. Hashtags como #PECdaImpunidade, #Xandão e #LulaDitador dominam o X, acompanhadas de lives emergenciais no YouTube e Telegram que distorcem fatos em tempo real e incitam seguidores a resistir. Em 11 de setembro, logo após o voto condenatório de Alexandre de Moraes, grupos no Rumble publicaram vídeos defendendo “resistência armada”, deixando claro como a esfera digital serve de ensaio para a radicalização.
No intervalo de 6 a 24 horas, essa tempestade online se converte em convocação para atos nas capitais. Pastores transformam púlpitos em palanques, deputados bolsonaristas reforçam apelos nas redes e caravanas começam a se organizar. O risco de contramanifestações progressistas aumenta e, com ele, o perigo de confrontos físicos. O 7 de setembro deu mostras do que está em jogo: em São Paulo e Brasília, jornalistas foram hostilizados e agredidos por multidões inflamadas por narrativas de perseguição judicial. No prazo de 24 a 72 horas, esse ciclo pode culminar em votação relâmpago da anistia, apresentada como gesto de pacificação nacional. Mas o efeito concreto seria o oposto: a divisão simbólica do país entre os que veem perdão e reconciliação e os que denunciam impunidade. O risco é de violência política localizada — ataques a sedes de partidos, emboscadas contra parlamentares, hostilizações de repórteres. Episódios semelhantes já ocorreram em novembro de 2022, quando atos em frente a quartéis resultaram em agressões a jornalistas da GloboNews e da Folha.
Dentro dessa lógica, quatro cenários se desenham. O mais provável é o do status quo tenso, em que a anistia avança na Câmara, mas encontra resistência no Senado e no STF. A violência digital permanece altíssima, o mercado pressiona por pacificação e a democracia vai sendo corroída de forma lenta, quase imperceptível, mas contínua. Um segundo cenário, de escalada controlada, ganha força caso a anistia seja aprovada na Câmara, mas barrada no Senado com apoio do Executivo e pressão internacional. O impasse se prolonga, protestos crescem de maneira localizada e a governabilidade entra em paralisia, com tarifas externas e lobby das big techs alimentando a instabilidade.
O cenário mais perigoso, ainda que menos provável, é o da ruptura macia. Nele, a anistia é aprovada e validada por um Congresso cúmplice e um STF dividido, abrindo caminho para a deslegitimação silenciosa da justiça. O mercado e o agro celebram a “pacificação”, mas o país afunda em um retrocesso institucional profundo, disfarçado sob verniz de normalidade. Há também a hipótese, de baixa probabilidade, do contra-choque institucional: STF derrubando a anistia por inconstitucionalidade, Senado travando a pauta e Executivo articulando com governadores moderados e sociedade civil. Essa reação conteria o bolsonarismo digital e de rua, reforçando Lula como liderança global, mas sob custo de polarização aguda e risco de violência localizada.
Os sinais precursores de cada cenário já estão no ar. Picos de hashtags em inglês como #dictatorship e #censorship sinalizam tentativas de internacionalizar a narrativa. Votações aceleradas no plenário expõem a pressa de parlamentares em blindar seus pares. Relatórios de bancos e federações do agro falam em “estabilidade via anistia”, e comunicados da Casa Branca e de Tel Aviv deixam claro que pressões externas jogam contra a soberania institucional. Nas ruas, a convocação de caravanas e o financiamento logístico por empresários são alertas de que a fagulha digital pode virar incêndio físico.
A história brasileira oferece lições amargas. Em 1964, empresários e governadores legitimaram um golpe em nome da estabilidade. Em 1979, a Lei da Anistia transformou torturadores em cidadãos livres, criando a cultura da impunidade. Em 2016, o impeachment embalado como “saída institucional sem trauma” mergulhou o país em crise prolongada. E em 2023, o 8 de janeiro mostrou como a convocação digital pode se traduzir em ataque físico ao coração da República. Setembro de 2025 carrega todos esses ecos. A cada decisão, repete-se o padrão: sob o pretexto de pacificação, forças poderosas empurram o país para a corrosão institucional. O risco é cristalizar novamente a impunidade como moeda de estabilidade, aprofundando o ciclo de violência política e fragilizando ainda mais as instituições.
Conclusão — O Brasil no fio da navalha

O Brasil chega a setembro de 2025 como um país suspenso no ar, preso entre o esforço desesperado de algumas instituições para manter a democracia de pé e a ofensiva incessante de forças que trabalham, dia e noite, para corroê-la. STF e Executivo, com todos os seus limites, têm sido as colunas que ainda seguram a estrutura, mas enfrentam ataques coordenados do Congresso, da mídia extremada, do fundamentalismo religioso, das big techs, de setores do capital e de pressões internacionais. É uma guerra de desgaste, em que cada decisão judicial, cada votação legislativa e cada fala de governadores e pastores são convertidas em munição contra o Estado democrático de direito.
O quadro é de alerta máximo. O país opera em nível Amarelo→Âmbar: o risco digital é altíssimo, com campanhas de ódio, ameaças de morte e mobilização internacional da narrativa de “censura” e “ditadura togada”; o risco de violência de rua é médio, mas palpável, como mostram as agressões a jornalistas no 7 de Setembro e as convocações permanentes no Telegram e no Rumble; e o impacto reputacional já é global, com agências internacionais descrevendo o Brasil como um teste democrático decisivo e governos estrangeiros usando tarifas e restrições de visto como armas de pressão política.
O ethos da pacificação, tão repetido em plenários e púlpitos, é uma miragem. O que se busca com a anistia não é reconciliação nacional, mas blindagem de elites políticas, econômicas e religiosas que se beneficiam da instabilidade. O paralelo com 1979 não é retórico: mais uma vez, tenta-se transformar crimes contra a democracia em páginas viradas, sacrificando o futuro em nome da impunidade. A cada concessão, abre-se espaço para que a violência simbólica se torne violência física, e para que o jogo democrático seja capturado por quem nunca aceitou as regras da democracia.
O Brasil está no fio da navalha. Se a anistia avançar, se a violência digital continuar sem freios e se pressões externas seguirem corroendo a soberania institucional, o país poderá viver uma ruptura silenciosa, legitimada pelo mercado e abençoada pelo fundamentalismo. Se, por outro lado, o STF, o Executivo, o Senado e a sociedade civil conseguirem articular um contra-choque institucional, ainda haverá chance de recompor as bases da democracia e fortalecer as instituições. Mas o tempo é curto, e os sinais de risco se acumulam.
A história ensina que não há neutralidade em momentos como este. Em 1964, elites que clamavam por estabilidade abriram as portas para duas décadas de ditadura. Em 2016, o impeachment “sem trauma” mergulhou o país em crise prolongada. Em 2023, o 8 de janeiro mostrou o que acontece quando se normaliza a radicalização. Hoje, em 2025, o Brasil precisa escolher entre repetir o ciclo da impunidade ou enfrentar de frente a corrosão institucional. O destino do país não está garantido — e depende da capacidade de resistir, recompor e projetar um futuro em que a democracia não seja apenas palavra, mas prática viva e inegociável.




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