O novo/velho plano da extrema direita: transformar a ciência em inimiga
- Sara e Rey
- 21 de ago.
- 10 min de leitura
A extrema direita brasileira ampliou sua ofensiva contra as instituições e agora mira a produção científica, transformando universidades e centros de pesquisa em alvos de uma engrenagem transnacional que busca desacreditar o conhecimento e convertê-lo em inimigo da democracia

A extrema direita brasileira volta a agir em sintonia com redes internacionais para forjar uma nova ofensiva contra as instituições. Se antes o alvo era restrito ao Supremo Tribunal Federal, agora a estratégia se amplia e mira a própria produção científica. O objetivo é claro: desacreditar universidades, revistas acadêmicas e pesquisadores, instaurando um clima de suspeição que paralisa a circulação do conhecimento e submete a ciência a interesses ideológicos externos.
A engrenagem começa fora do Brasil. Think tanks como a Foundation for Freedom Online e organizações satélites, a exemplo da Civilization Works, produzem relatórios que afirmam documentar censura e perseguição no país. Essas publicações, apoiadas por lobbies políticos nos Estados Unidos, são depois apresentadas como provas em audiências públicas no Congresso Nacional. Deputados da extrema direita transformam os plenários em palco para figuras como Mike Benz e Michael Shellenberger, que comparecem como especialistas estrangeiros dispostos a revelar a “verdade oculta” sobre o Brasil.
As sessões são encenadas com precisão. No papel de anfitriões, parlamentares do PL e de partidos satélites apresentam os convidados como autoridades internacionais. O conteúdo é previsível: acusações de que o STF persegue opositores, denúncias contra ministros e agora insinuações de que a ciência brasileira estaria contaminada por interesses políticos e até por vínculos com regimes inimigos dos Estados Unidos. O Congresso funciona como caixa de ressonância, conferindo verniz institucional a um discurso construído fora do país.
Daí em diante, a lógica da desinformação se cumpre. As falas são replicadas em vídeos curtos, exploradas por influenciadores e depois ganham espaço em veículos alinhados à direita radical. O ciclo de retroalimentação dá a impressão de que há um consenso emergente, quando na verdade se trata de um roteiro ensaiado para corroer a confiança pública em instituições nacionais
O palco da sessão

O cenário da audiência pública foi montado como se fosse uma encenação. À frente, o presidente da comissão, deputado Filipe Barros (PL-PR), abriu os trabalhos com formalidade, registrando a presença do convidado estrangeiro. Ao seu lado, outros parlamentares afinados com o bolsonarismo aguardavam a vez de falar. Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), autor do requerimento que deu origem ao encontro, tratou de exaltar a “importância histórica” da sessão, sugerindo que ali se revelariam engrenagens ocultas da censura. Caroline de Toni (PL-SC), conhecida pelo tom beligerante em audiências anteriores, reforçou que o Brasil precisava “ouvir a verdade” sobre como as universidades estariam capturando o debate público.
O ambiente lembrava menos uma reunião técnica e mais um tribunal improvisado. A mesa coberta por pilhas de documentos servia de cenário para falas ritmadas, cada uma desenhada para reforçar o roteiro previamente acordado. Quando Barros conduzia a palavra, as intervenções pareciam calibradas para criar um crescendo dramático, até a entrada do personagem principal: Mike Benz.
Na plateia, composta por assessores parlamentares, ativistas convidados e jornalistas simpáticos à pauta, reinava a expectativa de um espetáculo. Não se discutiam dados concretos sobre segurança cibernética ou regulação digital. Em vez disso, a universidade pública aparecia como alvo, descrita pelos deputados como centro de experimentação de mecanismos de censura e perseguição ideológica.
Cada fala parecia menos interessada em apurar fatos e mais em construir manchetes. As intervenções de Cavalcante e De Toni reforçavam a suspeita de que a ciência brasileira teria se transformado em uma engrenagem de repressão. O microfone, mais do que instrumento de escuta, servia como arma política. E a comissão, em vez de fórum de deliberação, se convertia em palco de guerra cultural, pronto para acolher as teses que Benz traria à cena.
Quando Mike Benz foi chamado a falar, a expectativa no plenário já havia sido cuidadosamente moldada pelos deputados da base bolsonarista. Ele iniciou sua intervenção apresentando-se como ex-funcionário do Departamento de Estado norte-americano e dirigente da Foundation for Freedom Online, instituição que, segundo ele, atua em defesa da liberdade de expressão. Mas rapidamente deixou claro que o alvo de sua exposição não eram apenas governos ou plataformas digitais, e sim a ciência brasileira.
Com voz pausada e marcada pela autoridade de quem se apresenta como especialista em “infraestruturas de censura”, Benz afirmou que o Brasil tornou-se “um dos epicentros globais da arquitetura de repressão digital”. Segundo ele, essa arquitetura estaria assentada dentro das universidades públicas, por meio de núcleos de pesquisa voltados ao combate à desinformação. “Esses grupos acadêmicos não apenas monitoram conteúdos, como produzem relatórios que servem de base para sanções políticas e judiciais”, declarou.
Benz insistiu que esses centros universitários “funcionam como terceirizados do Estado”, descrevendo-os como verdadeiras engrenagens de um sistema transnacional de controle de narrativas. Em suas palavras, tratava-se de um “projeto 2025” que visava destruir “as engrenagens do Estado americano” e que agora estaria sendo replicado em países como o Brasil. Ao citar esse plano, o ex-funcionário conectava a produção científica brasileira a uma espécie de conspiração internacional.
No meio de sua fala, Benz mencionou diretamente casos envolvendo pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), acusando-os de “usar o combate à desinformação como disfarce para criminalizar opositores”. Ele não apresentou provas concretas, mas reforçou que o simples fato de a academia produzir estudos nessa área já seria suficiente para classificá-la como cúmplice de censura. “As pesquisas que alegam enfrentar o discurso de ódio, na realidade, reconfiguram a fronteira entre liberdade e repressão, transformando opiniões políticas em crimes”, disse.
O clima no plenário era de acolhimento. Deputados como Caroline de Toni (PL-SC) e Filipe Barros (PL-PR) balançavam a cabeça afirmativamente, reforçando o coro contra a academia. Indiretamente, as falas de Benz ofereciam munição para o discurso político da base bolsonarista, que buscava associar a produção científica ao ativismo judicial.
Ao final, Benz descreveu as universidades brasileiras como “um laboratório de censura exportado para o mundo”, expressão que foi imediatamente anotada pelos parlamentares. Essa frase condensava a essência de sua narrativa: transformar a ciência em inimiga da liberdade, e a pesquisa acadêmica em extensão de um projeto de vigilância estatal.
A sessão adquiriu contornos de tribunal simbólico: Ao longo da audiência, a fala de Mike Benz foi usada como peça acusatória contra a própria ciência brasileira. Deputados trataram o convidado norte-americano como testemunha-chave, oferecendo-lhe espaço para sustentar a tese de que iniciativas acadêmicas contra a desinformação seriam, na prática, mecanismos de censura.
A inversão foi imediata: o que no campo científico é pensado como defesa da democracia e proteção da esfera pública, no discurso da audiência passou a ser descrito como perseguição. Benz, retomando suas conhecidas teses sobre a “infraestrutura da censura”, afirmou que governos e universidades teriam criado redes globais para monitorar e silenciar a opinião pública.
O ambiente lembrava mais uma acusação formal do que um debate acadêmico. Em vez de analisar a complexidade das pesquisas sobre desinformação, os parlamentares reproduziam a lógica importada de think tanks estrangeiros, como a Foundation for Freedom Online e a Civilization Works, que já haviam trabalhado para enquadrar centros de pesquisa como centros de censura. A ciência, que deveria ser ouvida como instância de diagnóstico, foi tratada como ré.
Esse deslocamento de papéis se conecta a um movimento mais amplo, identificado em diversos países, de submeter a academia a regimes de suspeita. Como registrou Reynaldo Aragon em artigo recente, há periódicos científicos que já exigem de autores declarações formais de que não figuram em listas internacionais de sanções, um mecanismo burocrático que transforma o pesquisador em potencial inimigo. Na Câmara, a fala de Benz e a performance dos deputados bolsonaristas se alinharam a esse roteiro, reforçando a ideia de que a pesquisa acadêmica sobre comunicação digital seria um braço de perseguição política.
No tom adotado pelos parlamentares, a denúncia não precisava de provas empíricas. O que valia era o enquadramento simbólico: cientistas eram apresentados como censores, e plataformas digitais, como vítimas. Essa narrativa, já testada no exterior, foi importada para o Brasil como ferramenta de guerra cultural, invertendo os papéis entre acusadores e acusados e colocando a universidade pública no banco dos réus.
A universidade sob ataque

No centro da audiência de 6 de agosto, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) foi apresentada como símbolo de um suposto “complexo industrial da censura”. Mike Benz, em sua fala, citou projetos acadêmicos financiados por agências internacionais e vinculados à checagem de fatos como evidência de que a universidade teria se convertido em braço institucional do autoritarismo digital. Segundo ele, “organizações brasileiras, muitas delas ligadas à UFRJ, receberam dinheiro estrangeiro para vigiar conservadores e restringir a liberdade de expressão”.
A acusação não era casual. As universidades públicas sempre ocuparam lugar estratégico na narrativa da extrema direita. Nos anos da ditadura militar, foram tratadas como centros de subversão, alvo de invasões policiais, perseguição a docentes e prisões de estudantes. Em 2025, reaparece o mesmo roteiro, com outra roupagem: em vez de comunismo, a acusação é de “censura digital”. O alvo, contudo, permanece o mesmo, a ciência brasileira como inimiga a ser neutralizada.
Deputados como Marcel Van Hattem (Novo-RS) e General Girão (PL-RN) reforçaram esse enquadramento. Van Hattem afirmou que “as universidades se prestam a difundir uma narrativa única”, enquanto Girão acusou a UFRJ de abrigar “aparelhos de perseguição política”. Carla Dickson (União-RN) completou dizendo que “cidadãos comuns são vítimas desse esquema que se disfarça de ciência”.
Ao colocar a UFRJ no banco dos réus, a audiência não apenas atacou uma instituição acadêmica, mas reeditou uma velha prática autoritária, transformar o espaço do saber em território suspeito, reduzindo a ciência a uma engrenagem de vigilância. A universidade, em vez de produtora de conhecimento, foi tratada como fábrica de perseguição.
Essa estratégia repete o padrão da ditadura militar, que usava o discurso da segurança nacional para justificar a repressão à produção acadêmica. Agora, é o discurso da liberdade de expressão que legitima ataques à universidade, convertida em inimiga simbólica no campo da disputa política.
O clima da audiência pública evoluiu para uma atmosfera de desconfiança dirigida não apenas a um pesquisador em particular, mas a todo o sistema acadêmico brasileiro. Deputados da base bolsonarista passaram a insinuar que centros de pesquisa e universidades estariam “a serviço da censura”, apropriando-se da retórica importada das redes norte-americanas. Em sucessivas falas, citou-se o termo “indústria da desinformação” não para descrever as fábricas de fake news que inundaram o país nos últimos anos, mas para acusar a própria academia de fabricar parâmetros artificiais que limitariam a liberdade política.
Mike Benz reforçou esse enquadramento ao dizer que grupos universitários brasileiros, financiados por agências de fomento, estariam aplicando “modelos de censura transnacionais” sob o pretexto de combater o discurso de ódio. Em sua formulação, os pesquisadores não seriam estudiosos, mas “operadores de um aparato que ameaça a democracia”, deslocando o eixo da crítica: o que antes era um esforço científico para proteger o espaço público contra manipulação informacional tornou-se, em sua narrativa, um mecanismo autoritário.
Parlamentares afirmaram que há uma “colonização ideológica das universidades”, alegando que os estudos sobre fake news e radicalização servem apenas para silenciar conservadores. A retórica se valeu de exemplos enviesados e de referências indiretas a relatórios internacionais, em uma estratégia que naturaliza a inversão: as vítimas da desinformação passam a ser acusadas de censores.
A reação de setores progressistas da comissão não foi suficiente para frear a narrativa. Deputados do PT e do PSOL tentaram rebater lembrando que as pesquisas são públicas, auditáveis e seguem protocolos de transparência. Argumentaram que o que se tenta fazer, ao atacar a ciência, é desqualificar toda a infraestrutura crítica que ajudou a mapear redes golpistas. Mas a sessão já estava marcada por um enredo que ecoava práticas mais amplas: a narrativa cristalizada foi a de que a ciência brasileira precisa ser “vigiada” por sua suposta parcialidade.
A engrenagem internacional

Durante o Fórum de Westminster sobre liberdade de expressão, realizado em Londres com representantes de mais de 20 países, o jornalista Claudio Dantas, que se apresenta como “um dos mais influentes jornalistas do Brasil” publicou em seu canal no YouTube uma entrevista com Mike Benz, ex-funcionário do Departamento de Estado dos Estados Unidos, o deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS) e o colunista Eli Vieira e o jornalista Michael Shellenberger.
Benz iniciou sua carreira em cargos institucionais nos Estados Unidos, com passagem pelo Departamento de Estado, e rapidamente se consolidou como uma das vozes mais estridentes contra políticas de regulação digital. Após deixar o serviço público, fundou a Foundation for Freedom Online (FFO), organização que se apresenta como dedicada à defesa da liberdade de expressão, mas que na prática atua como centro de formulação de teses sobre “censura digital” em países do Sul Global. Documentos revelados apontam que a FFO estabelece conexões estreitas com think tanks da direita internacional, como a Civilization Works, e opera na mesma lógica da guerra híbrida, transformando disputas jurídicas e regulatórias em campanhas políticas transnacionais.
A retórica de Benz segue um padrão: apresentar governos e instituições do Judiciário de países estratégicos como agentes de um “complexo industrial da censura”, acusando-os de manipular eleições e de perseguir opositores sob a bandeira do combate à desinformação. No caso brasileiro, ele chegou a afirmar que o país “é pior que a Alemanha em termos de censura”, colocando o Supremo Tribunal Federal e, em especial, ministros como Alexandre de Moraes no centro de sua denúncia. Segundo ele, a USAID teria direcionado recursos para financiar agências de checagem e tecnologias usadas pelo Tribunal Superior Eleitoral, algo que Benz retrata como uma operação coordenada para limitar a liberdade nas redes sociais.
Essa narrativa o conecta a outros atores internacionais, entre eles Michael Shellenberger. Se Benz constrói o alicerce institucional e geopolítico de suas acusações, Shellenberger funciona como a face midiática, levando ao grande público supostos documentos, relatórios e denúncias que reforçam a ideia de um “sistema global de censura”. Ambos se complementam: Benz fornece o discurso com verniz diplomático e técnico, enquanto Shellenberger o traduz em linguagem de denúncia acessível e com forte apelo político.
O diálogo entre os dois em Londres reforçou essa sintonia. Enquanto Benz acusava diretamente o Supremo Tribunal Federal e citava cortes de verbas na USAID como reação à suposta ingerência em eleições estrangeiras, Shellenberger respondeu às críticas sobre soberania brasileira dizendo que seu trabalho não representava ameaça externa, mas apenas “segredos escondidos pelo STF que precisavam ser revelados”. Essa divisão de papéis, entre o ex-funcionário público que fala em nome da diplomacia da liberdade de expressão e o jornalista que se apresenta como arauto da transparência, é a chave para compreender a aliança ideológica que hoje projeta ataques à democracia brasileira sob o rótulo da defesa da liberdade.
A velha dança

O percurso iniciado em Londres, no Fórum de Westminster realizado em espaço do Parlamento britânico, e reproduzido no Congresso brasileiro, revela a consolidação de uma engrenagem transnacional. Think tanks estrangeiros fornecem teses, jornalistas e parlamentares amplificam em eventos internacionais, e as comissões da Câmara oferecem o selo institucional. O que se apresenta como debate sobre liberdade de expressão é, na prática, a construção de uma caixa de ressonância que articula interesses externos e a extrema direita brasileira contra o Judiciário e a democracia.
O roteiro se repete em diferentes esferas: think tanks estrangeiros fornecem insumos, influenciadores digitais transformam falas em cortes virais, parlamentares amplificam em comissões e a opinião pública é trabalhada a partir dessa engrenagem. A cada volta desse ciclo, a democracia brasileira é submetida a uma pressão adicional, seja contra a Justiça, seja contra a universidade, seja contra a própria ideia de soberania informacional.
O paralelo histórico com a ditadura militar mostra que a repressão ao pensamento crítico nunca desapareceu, apenas se atualizou. Se antes eram as botas e baionetas dentro das universidades, hoje são os algoritmos e as comissões legislativas a serviço de uma narrativa transnacional. O alvo continua o mesmo: o conhecimento, a justiça, a possibilidade de pensar e decidir de forma autônoma.
A sessão de 6 de agosto expôs o Congresso como caixa de ressonância desse projeto. A de 11 de agosto mostrou o bolsonarismo tentando emplacar uma nova vaza jato contra Alexandre de Moraes. A de 19 de agosto, na Comissão de Segurança Pública, transformou-se em palco para blindar as big techs e acusar o Judiciário. Em todas, a engrenagem transnacional se fez presente. Reconhecer essa coreografia é passo essencial para enfrentá-la. A memória da ditadura lembra o preço da omissão, e o presente mostra que a defesa da democracia exige vigilância redobrada.
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