Operação Contenção: entre o plano e o sangue
- Sara Goes
- 6 de nov.
- 21 min de leitura

A história (por enquanto) completa da ação mais letal do Rio de Janeiro
Deflagrada em 28 de outubro de 2025, a Operação Contenção prometia inteligência e precisão contra o crime organizado, mas terminou como a ação mais letal da história do Rio: 135 mortos e um Estado manchado de sangue
Planejamento e base legal

A Operação Contenção foi deflagrada nas primeiras horas de 28 de outubro de 2025, com o objetivo de desarticular a estrutura interestadual do Comando Vermelho e capturar suas principais lideranças. A ação teve como base o Inquérito nº 4573/2025, instaurado pela Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro e conduzido pela Delegacia de Repressão a Organizações Criminosas, sob coordenação do delegado Roberto Lima Júnior e supervisão da Subsecretaria de Inteligência.
O inquérito, de caráter sigiloso, identificou conexões ativas do Comando Vermelho em 11 unidades da federação: Rio de Janeiro, São Paulo, Pará, Amazonas, Bahia, Ceará, Pernambuco, Mato Grosso do Sul, Paraná, Espírito Santo e Distrito Federal. As investigações mapearam rotas de armas e dinheiro, estrutura de lavagem de capitais e relações com grupos milicianos que controlam territórios urbanos e zonas portuárias. O relatório de conclusão parcial foi encaminhado ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro em 18 de outubro de 2025, recomendando a solicitação de medidas cautelares e de captura.
Entre 22 e 24 de outubro de 2025, a Vara de Combate ao Crime Organizado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro expediu 100 mandados de prisão e 145 mandados de busca e apreensão, assinados pelo juiz Ricardo Fagundes Tavares. A decisão judicial fundamentou-se em “forte lastro probatório produzido em investigações de inteligência, interceptações telefônicas e cooperação interinstitucional interestadual”.
O magistrado determinou que os mandados fossem cumpridos entre 4h e 18h, “a fim de preservar a integridade física de moradores e agentes públicos”, e classificou o objetivo da operação como uma “ação coordenada e simultânea em comunidades de alta periculosidade, a fim de capturar lideranças e interromper rotas de armamento e lavagem de capitais”.
A estrutura do plano indicava a concentração das ações em 26 comunidades, com foco principal nos Complexos da Penha e do Alemão, apontados como centros de comando e logística do Comando Vermelho. O principal alvo era Carlos Eduardo de Souza Silva, conhecido como Doca, considerado o criminoso mais procurado do estado e investigado por mais de cem homicídios.
O planejamento da operação foi levado ao Supremo Tribunal Federal em 3 de novembro de 2025, por meio de um relatório circunstanciado encaminhado ao ministro Alexandre de Moraes, relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635, conhecida como ADPF das Favelas. O processo obriga o Estado do Rio de Janeiro a prestar contas ao Supremo sobre o planejamento, a execução e as consequências de operações policiais em comunidades, estabelecendo protocolos rigorosos de transparência, controle e mitigação de danos à população civil.
No documento enviado ao Supremo, o governador Cláudio Castro (PL) apresentou a Operação Contenção como parte de uma “política pública de segurança integrada”. O texto descreveu a operação como o “exercício legítimo do poder-dever de proteção da sociedade” e sustentou que as forças do Estado enfrentavam uma organização criminosa de “perfil narcoterrorista”.
Segundo o governo estadual, a facção empregava “táticas de guerrilha urbana, uso de armamento de guerra e ocupação de áreas de mata como redutos estratégicos de fuga e resistência”, o que legitimaria o uso intensivo da força e de armamento de uso restrito.
A terminologia “narcoterrorismo” havia sido discutida e criticada em artigo publicado em agosto de 2025 pelo site Código Aberto, que analisava o avanço de uma narrativa securitária no discurso político brasileiro. O texto apontava que o uso da categoria “terrorismo” para designar facções internas serve para transportar o crime comum para o campo da segurança nacional, abrindo espaço para operações militarizadas e para a suspensão de garantias constitucionais em áreas periféricas.
O enquadramento discursivo adotado pelo governo fluminense ganhou ainda mais força após a repercussão de outro artigo publicado em outubro de 2025, também no site Código Aberto, que se tornou viral ao mostrar como a retórica da guerra ao terror vem sendo apropriada por autoridades locais para justificar políticas de segurança de exceção. O texto identificava no vocabulário oficial da Operação Contenção a mesma estrutura narrativa usada em contextos de conflito, em que o inimigo é tratado como uma ameaça difusa e desumanizada.
Assim, a escolha de linguagem presente no relatório encaminhado ao Supremo reforça a leitura de que a Operação Contenção não se limitou ao cumprimento de mandados judiciais. Ela foi construída discursiva e juridicamente como uma resposta excepcional do Estado a uma ameaça enquadrada no imaginário da guerra ao terror, agora transposta para dentro das favelas do Rio de Janeiro.
Estrutura tática e logística

A execução da Operação Contenção mobilizou uma estrutura de segurança pública inédita no estado desde o início das medidas de controle judicial impostas pela ADPF 635. O plano operacional, validado internamente pela Secretaria de Estado de Polícia Civil e pela Secretaria de Estado de Polícia Militar, previa a atuação de aproximadamente 2.500 agentes distribuídos entre forças táticas, unidades especializadas e grupos de apoio logístico.
A coordenação central coube ao secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, e ao secretário de Polícia Militar, Luiz Henrique Marinho Pires, sob supervisão direta do Gabinete de Intervenções Estratégicas, vinculado ao Palácio Guanabara. O comando tático de campo foi delegado ao coronel Marcos Vinícius dos Santos, do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), e ao delegado Rodrigo Oliveira, da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE).
Participaram da operação as seguintes unidades: BOPE, CORE, Batalhão de Ações com Cães (BAC), Batalhão de Polícia de Choque (BPChq), Regimento de Cavalaria Mecanizada (RECOM), 41º Batalhão de Polícia Militar (Irajá), 3º BPM (Méier), além de equipes de apoio da Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP) e da Divisão de Homicídios (DH).
O aparato logístico incluiu 32 veículos blindados terrestres, 12 veículos de demolição, dois helicópteros de observação e drones de vigilância de longo alcance. O planejamento previa ainda o uso de câmeras corporais acopladas aos uniformes, com transmissão em tempo real para o Centro Integrado de Comando e Controle (CICC), onde oficiais de monitoramento acompanhariam a movimentação das tropas e eventuais confrontos.
De acordo com o documento operacional, a tática adotada tinha como diretriz “concentrar os confrontos em áreas de mata, evitando trocas de tiros em regiões densamente edificadas e reduzindo riscos à população civil”. As diretrizes de operação previam o estabelecimento de perímetros de isolamento, a evacuação prévia de áreas de risco e a presença de ambulâncias de apoio estacionadas nas entradas das comunidades, em cumprimento às normas da ADPF 635.
O plano descrevia o objetivo estratégico de “confinar, sufocar e desestabilizar o núcleo de comando” do Comando Vermelho. O cerco simultâneo deveria impedir fugas e apreender recursos financeiros e logísticos da facção. Para isso, os efetivos foram distribuídos em quatro eixos de penetração: acesso pela Rua Aimoré (Vila Cruzeiro), pelo Largo da Penha, pelo Complexo do Alemão e pela Estrada do Itararé.
As ações foram divididas em três fases: contenção, incursão e estabilização. A primeira consistia no bloqueio de rotas de fuga e interdições em vias estratégicas; a segunda previa a entrada simultânea das tropas em comunidades sob monitoramento aéreo; e a terceira correspondia à retirada gradual das forças, com recolhimento de provas, apreensão de armas e perícia dos locais.
O plano também estabelecia, em caráter normativo, que as unidades de elite só poderiam agir após autorização expressa do comando integrado, mediante comunicação via rádio registrada e arquivada no sistema interno. Essa medida, segundo a justificativa técnica, visava “assegurar rastreabilidade decisória e controle operacional de cada avanço”.
Apesar da robustez do planejamento, não há registros públicos que confirmem a presença efetiva de ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) durante a execução da operação, nem evidências de que as diretrizes de isolamento tenham sido integralmente cumpridas.
Relatos colhidos pelo jornalista Marcelo Auler e publicados em 31 de outubro de 2025 no canal do Brasil 247 descrevem uma realidade muito distinta da apresentada nos comunicados oficiais. Em sua reportagem sobre a Vila Cruzeiro, Auler ouviu moradores e profissionais de saúde que acompanharam a operação e afirmaram que nenhuma ambulância do Samu entrou na comunidade durante todo o dia 28.
Segundo o material veiculado no YouTube, o socorro aos feridos e a remoção dos corpos foram feitos por moradores e voluntários, que improvisaram macas com portas, lençóis e tábuas. A médica Maria Sampaio, formada pela UFRJ e presente no local, relatou ter ajudado a carregar corpos em estado de decomposição vindos da mata, todos com múltiplas marcas de tiros. O jornalista também registrou depoimentos de moradores que presenciaram execuções e remoções forçadas de corpos, contrariando o protocolo oficial que previa perícia imediata e presença de equipes de saúde de prontidão.
Esses testemunhos expuseram a distância entre o planejamento apresentado ao Supremo Tribunal Federal e a realidade documentada nas ruas. A promessa de uma operação controlada, com resgate médico e mitigação de danos, transformou-se, segundo os relatos, em um cenário de abandono e violência sem assistência estatal.
O cerco e a deflagração

A deflagração da Operação Contenção ocorreu às quatro horas da manhã de 28 de outubro de 2025. O deslocamento das tropas foi iniciado a partir de quatro pontos estratégicos: o 41º Batalhão de Polícia Militar, em Irajá; o 3º BPM, no Méier; o quartel do BOPE, em Laranjeiras; e o heliporto da Coordenadoria de Recursos Especiais, na Cidade da Polícia. As vias de acesso aos Complexos da Penha e do Alemão foram bloqueadas antes das cinco horas, e as primeiras trocas de tiros foram registradas pouco depois, na região conhecida como Rua Aimoré, principal ligação entre a Vila Cruzeiro e a Penha.
O comando tático da operação permaneceu concentrado no Centro Integrado de Comando e Controle (CICC), de onde as comunicações por rádio e as imagens das câmeras corporais eram acompanhadas em tempo real. Às 6h40, o registro operacional indica que o coordenador de campo solicitou apoio aéreo após relatar resistência armada com uso de fuzis automáticos.
Os confrontos se estenderam por quatorze horas ininterruptas. Moradores relataram que os disparos começaram ainda antes do amanhecer e se intensificaram durante a manhã, com o sobrevoo contínuo de helicópteros e a entrada de blindados pelas vielas principais. As tropas de contenção permaneceram posicionadas nas encostas e nos acessos de mata até as 18h, quando foi emitida a ordem de estabilização do perímetro.
O balanço encaminhado pela Secretaria de Polícia Civil registrou 121 mortos, quatro deles agentes do Estado, treze feridos, entre policiais e civis, e 99 pessoas presas. As informações posteriores, entretanto, divergem. O anexo de consolidação técnica entregue ao Supremo Tribunal Federal indica 135 mortos, número que coincide com estimativas feitas pelo Instituto Fogo Cruzado e pelo Observatório da Segurança RJ.
Foram apreendidas 118 armas de fogo, das quais 93 eram fuzis de calibres 5.56 e 7.62, além de pistolas, granadas, rádios comunicadores e coletes balísticos. Também foram bloqueados aproximadamente seis bilhões de reais em ativos financeiros e bens vinculados a empresas de fachada utilizadas pela facção.
A complexa composição do arsenal apreendido no dia 28 de outubro revela que o material em circulação nas favelas cariocas ultrapassa em muito a noção de armamento local. Entre os 93 fuzis recolhidos, havia 27 Colt M4, plataforma AR-15 de uso militar e civil, 18 AK-47 e Norinco Type 56 de origem russa e chinesa, 15 Taurus T4 de fabricação nacional, 11 FAL calibre 7.62 e cerca de 22 outras peças sem numeração legível ou com identificação parcial.
Ao menos 14 apresentavam modificações para disparo automático e supressão de número de série. Exames periciais apontaram ainda que cinco Colt M4 e três AK-47 haviam sido importados legalmente para clubes de tiro e desviados para o crime. Entre os itens também constavam granadas atribuídas a fabricantes israelenses, coletes balísticos sem registro de lote, rádios comunicadores e carregadores de alta capacidade.
Esses dados indicam que o armamento apreendido não se origina em uma produção artesanal, mas em redes interestaduais e transnacionais de abastecimento que operam dentro e fora da legalidade. Trata-se de um mercado híbrido, que combina importação formal, contrabando e desvio de estoque civil autorizado. Nesse sentido, a narrativa de que o Comando Vermelho estaria restrito à favela encontra contradições. O arsenal reflete conexões com estruturas empresariais e fluxos de comércio que atravessam fronteiras institucionais, indicando que o núcleo de abastecimento está mais próximo de circuitos econômicos do que de barricadas.
O contraste com a Operação Carbono Oculto, deflagrada em agosto de 2025 contra o braço financeiro do PCC, evidencia a diferença de escala e método entre os dois modelos de enfrentamento. Enquanto a Contenção resultou em 135 mortos e no bloqueio de aproximadamente seis bilhões de reais, a Carbono Oculto desarticulou uma rede que movimentou cinquenta e dois bilhões de reais e confiscou trezentos e quarenta e oito milhões de bens sem um único disparo.
A comparação mostra que, ao contrário da dimensão territorial e letal da operação no Rio, o cerco financeiro conduzido em São Paulo atingiu as engrenagens econômicas do crime organizado, revelando que os centros de decisão e de lucro raramente estão nos territórios onde o Estado concentra sua força.
O alvo prioritário da operação, Carlos Eduardo de Souza Silva, conhecido como Doca, escapou. O secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, afirmou que o líder conseguiu fugir utilizando “barreira humana” formada por homens armados, o que impossibilitou o avanço dos agentes. A operação, portanto, cumpriu 100 mandados e produziu mais de uma centena de mortes, mas não prendeu o chefe do grupo.
A ausência do principal objetivo tático, aliada à magnitude das baixas, deu origem a uma contradição central: uma ação planejada para captura terminou marcada pela eliminação física de suspeitos.
A versão oficial da operação, apresentada como planejada, proporcional e monitorada, contrasta com os relatos registrados por Auler. O morador Robson, residente há seis meses na região conhecida como Vacaria, contou ter visto quatro policiais entrarem em um beco com um rapaz baleado. “Ele ainda estava vivo. Eles o apoiavam, andando. Aí botaram ele no beco, o policial deu três passos pra trás e deu de cinco a seis tiros nele.” Segundo Robson, após os disparos, “os agentes se abraçaram e arrastaram o corpo”.
Ele relatou ter gritado que era uma covardia e, em seguida, teve o carro destruído pelos policiais, que quebraram os vidros e furaram os pneus. “Agora eu vou ter que dar queixa na polícia contra a própria polícia. Mas quem me garante a minha integridade física?”, questionou.
O jornalista também ouviu o padre Edmar Augusto, pároco da Paróquia Nossa Senhora de Aparecida, na Vila Cruzeiro. Recém-chegado à comunidade, ele afirmou: “O que estamos vivendo aqui é fora do normal. Alguma coisa está errada. Não pode haver esse número excessivo de mortes, 134 até agora, segundo o noticiário.” O religioso relatou ter visto “mães debruçadas sobre os pés de seus filhos” e destacou que “o pessoal daqui trabalha, é gente que pega ônibus pra Zona Sul, pra Barra. O pessoal daqui não é bandido. Claro que tem quem esteja envolvido no crime, mas isso não justifica uma ação tão cruel.”
Os relatos colhidos por Marcelo Auler descrevem um cenário de execuções, ausência de perícia e abandono estatal, distante do modelo operacional apresentado ao Supremo Tribunal Federal. A promessa de uma operação controlada, com perícia imediata e atendimento médico, foi substituída, segundo os testemunhos, por uma dinâmica de guerra em que a população civil ficou exposta e sem assistência.
A fuga do principal alvo comprometeu o resultado estratégico da operação. Embora os mandados tenham sido integralmente cumpridos e o aparato repressivo tenha alcançado números expressivos de apreensão, a ausência de prisões entre a cúpula do Comando Vermelho e o elevado número de mortos transformaram a Contenção em um ponto de inflexão na política de segurança do estado.
Ao final do dia, o Gabinete de Intervenções Estratégicas emitiu nota classificando a Contenção como “operação de alta complexidade, com resultado satisfatório e cumprimento integral da ordem judicial”. Entretanto, as contradições entre a versão oficial e os relatos de campo apontam para falhas graves na execução, abrindo espaço para questionamentos sobre a legalidade dos procedimentos e o descumprimento de protocolos da ADPF 635.
A falha estratégica e o controle judicial

A fuga do principal alvo da operação, Carlos Eduardo de Souza Silva, conhecido como Doca, foi o primeiro ponto de inflexão da Operação Contenção. O secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, declarou, em coletiva no dia 29 de outubro de 2025, que o líder do Comando Vermelho escapou por meio de uma “barreira humana” formada por homens armados, o que teria impossibilitado o avanço dos agentes sem risco de “baixas colaterais”.
O fracasso tático colocou em evidência uma contradição fundamental: uma operação planejada para capturar terminou marcada pela eliminação física de suspeitos. O balanço final apresentado ao governo contabilizou 135 mortos, 99 presos, 118 armas apreendidas e seis bilhões de reais bloqueados em ativos financeiros. No entanto, nenhum dos principais integrantes do núcleo de comando da facção foi capturado.
A partir desse ponto, o debate sobre a legitimidade da Contenção ultrapassou a esfera policial e alcançou o controle judicial. A ADPF 635, conhecida como “ADPF das Favelas”, obriga o Estado do Rio de Janeiro a comunicar ao Supremo Tribunal Federal qualquer operação de grande porte, com detalhamento sobre o planejamento, os resultados e os impactos colaterais.
No dia 29 de outubro, o ministro Alexandre de Moraes, relator da ADPF, determinou que o governo estadual apresentasse, em 48 horas, um relatório circunstanciado contendo dados sobre o número de mortos, feridos, perícias realizadas, cadeia de custódia, preservação de provas, efetivo mobilizado e tipo de armamento utilizado. O despacho foi motivado pela magnitude da letalidade e pela ausência de informações públicas sobre a presença de equipes de saúde e perícia.
O relatório solicitado foi entregue ao Supremo em 3 de novembro de 2025. Com cerca de 3 MB, o documento reafirma que a operação foi conduzida dentro da legalidade e que os “confrontos se concentraram em áreas de mata”. Contudo, em um dos trechos, o próprio texto oficial reconhece a quebra da cadeia de custódia, ao admitir que “moradores removeram corpos da área de mata antes da chegada das equipes periciais”.
Essa admissão levou Moraes a determinar, em 2 de novembro, a preservação rigorosa de todos os elementos materiais e a entrega das provas à Defensoria Pública da União (DPU), à Defensoria do Estado do Rio (DPRJ) e ao Ministério Público do Estado (MPRJ). A decisão, de caráter coercitivo, advertia que o descumprimento das medidas poderia configurar crime de desobediência judicial.
O MPRJ, sob a chefia do procurador-geral Antonio José Campos Moreira, instaurou no mesmo dia uma investigação independente, acionando o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (GAESP). Três peritos legistas e um promotor acompanharam as necropsias no Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto, utilizando scanners de alta resolução para obter radiografias completas dos corpos. O objetivo era identificar o padrão dos disparos e diferenciar execuções de confrontos reais.
A Defensoria Pública da União também ingressou com requerimento próprio em 30 de outubro, denunciando a falta de transparência nas perícias e o impedimento do acesso da Defensoria estadual às áreas isoladas. O pedido foi acatado integralmente por Moraes no domingo seguinte, com ordem expressa de liberação dos perímetros e cópia integral dos registros de câmeras corporais.
Até 29 de outubro, o MPRJ não havia recebido nenhuma denúncia formal de abuso ou execução. A ausência de registros foi interpretada pelos próprios defensores como reflexo do medo e da descrença nas instituições, sentimento reiterado nos depoimentos de moradores da Vila Cruzeiro e registrado pelo jornalista Marcelo Auler, em 31 de outubro, no canal do Brasil 247.
Os laudos parciais apresentados posteriormente indicaram que 87% das vítimas foram atingidas por tiros na região torácica e craniana, padrão compatível com disparos de curta distância e incompatível com trocas de fogo em movimento. Em 42 casos, as vítimas apresentavam sinais de disparo em direção descendente, o que reforçou a hipótese de execução.
A resposta institucional à operação foi marcada por tensões internas. A Secretaria de Polícia Civil defendeu o uso da força e reiterou que os alvos “eram indivíduos de alta periculosidade”. Já a Procuradoria-Geral do Estado (PGE-RJ), em manifestação ao Supremo, argumentou que “a operação atendeu a todos os critérios de planejamento, legalidade e proporcionalidade previstos na ADPF 635”.
Contudo, as imagens periciais e os relatos de campo expuseram contradições. A promessa de uma operação controlada, com perícia imediata e equipes médicas de prontidão, deu lugar a um cenário de abandono e improviso. Os corpos foram removidos por moradores, e as áreas de confronto permaneceram isoladas sem registro pericial completo.
A ausência de Doca, alvo que justificou o emprego de 2.500 agentes e 32 blindados, somada à letalidade recorde, acabou por enfraquecer o discurso de eficiência operacional. Mesmo com o bloqueio bilionário e a apreensão de armamento, a Contenção passou a ser analisada sob outro prisma: o da violação de direitos humanos e do descumprimento de parâmetros judiciais estabelecidos pelo STF.
Ao final da primeira semana de novembro, Moraes solicitou um segundo relatório complementar sobre a atuação das forças de segurança, exigindo que o governo do Rio apresentasse, em quinze dias, o plano de prevenção de letalidade policial e de atendimento emergencial nas comunidades. O pedido marcava o início de uma nova fase de acompanhamento judicial das operações de segurança pública no estado.
A partir daí, a Contenção deixou de ser apenas uma operação policial e se tornou um caso de estudo jurídico, com implicações diretas sobre a responsabilidade do Estado em contextos de guerra urbana. O episódio consolidou o entendimento de que o cumprimento da lei não se limita à emissão de mandados judiciais, mas exige a observância dos princípios constitucionais da vida, da dignidade humana e da prestação de contas diante da sociedade.
A disputa pela opinião pública

O pós-operação foi marcado por uma guerra de versões. A Operação Contenção, que resultou em 135 mortes, rapidamente deixou o campo policial e se tornou uma disputa narrativa sobre legitimidade, segurança e poder. Pesquisas de opinião pública realizadas entre 29 e 31 de outubro de 2025 revelaram um país dividido entre o medo e a crença na força como solução.
Em 1º de novembro de 2025, a Secretaria de Comunicação do Estado do Rio de Janeiro divulgou um levantamento encomendado ao Instituto Veritá (cuja divulgação de pesquisas já foi suspensa pela Justiça Eleitoral em 2022 por suspeitas de irregularidades), segundo o qual 87% dos entrevistados nas áreas afetadas afirmavam aprovar a atuação das forças de segurança durante a operação. A pesquisa foi imediatamente incorporada às peças de comunicação do governo estadual, citada em entrevistas e incluída no relatório circunstanciado enviado ao Supremo Tribunal Federal.
Nos dias seguintes, os números do Veritá foram reforçados por um conjunto de levantamentos da AtlasIntel, realizados em parceria com institutos de pesquisa regionais. A pesquisa nacional, concluída em 31 de outubro, apontou 73% de aprovação à megaoperação e 21% de desaprovação, com 6% sem opinião formada. No recorte regional da Região Metropolitana do Rio, a aprovação alcançou 81%, enquanto entre moradores de favelas e periferias caiu para 41%, com 53% de desaprovação e 6% de indecisos.
Os dados da Atlas mostraram também que 68% dos entrevistados acreditam que o Estado deve empregar as Forças Armadas em ações semelhantes, e 52% consideram que o uso de armamento pesado é aceitável em áreas urbanas quando há suspeita de presença de criminosos. Entre os que aprovaram a operação, 74% apoiam o projeto de lei em tramitação no Congresso que equipara facções criminosas a organizações terroristas, enquanto apenas 27% dos que desaprovaram a operação concordam com a medida.
Essa associação direta entre o apoio à operação e o endosso à legislação de caráter militarizado indica um processo de formação de consenso social em torno da ideia de “narcoterrorismo”, conceito que apareceu pela primeira vez em documentos oficiais do governo fluminense e depois ganhou projeção nacional. A pesquisa mostra ainda que 61% dos brasileiros declararam apoio à proposta de enquadrar facções como terroristas, e que a aprovação é maior entre os entrevistados que se identificam com o campo político de direita (78%) do que entre os de esquerda (39%).
O discurso governamental de “defesa da sociedade” passou, assim, a se amparar não apenas em relatórios jurídicos e operacionais, mas também em uma leitura social da aprovação pública como legitimidade moral. O governador Cláudio Castro, em pronunciamento de 2 de novembro, afirmou que “o Estado agiu com o apoio do povo e dentro da lei”.
Enquanto os números do governo eram utilizados para sustentar a eficácia da operação, instituições independentes apresentaram um cenário oposto. O Instituto Fogo Cruzado, em parceria com o Observatório das Favelas e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgou no dia 6 de novembro um levantamento qualitativo com 120 moradores das comunidades da Penha, Vila Cruzeiro e Complexo do Alemão.
Segundo o relatório, 74% dos entrevistados desaprovaram a operação, 83% afirmaram que “a operação matou inocentes” e 92% disseram ter sentido medo de sair de casa nos dias seguintes à incursão. Além disso, 68% relataram que não houve presença de ambulâncias ou equipes de resgate, e 54% afirmaram ter visto corpos sendo removidos por moradores, não por agentes do Estado.
As palavras mais citadas nas respostas abertas foram “medo”, “revolta” e “injustiça”. Apenas 12% dos entrevistados disseram sentir-se mais seguros após a operação. O Fogo Cruzado classificou a ação como “um marco de deslegitimação do Estado democrático de direito”, afirmando que “a violência institucional foi apresentada como política pública”.
O FBSP, em nota técnica publicada em 7 de novembro, destacou que a Contenção rompeu todos os parâmetros de proporcionalidade já registrados desde a criação da ADPF 635, a “ADPF das Favelas”, que regula operações policiais em comunidades. A nota alertou para a “tendência crescente de militarização das políticas de segurança e da incorporação de uma retórica de guerra em territórios civis”.
A discrepância entre os números do Veritá e da Atlas, por um lado, e as sondagens do Fogo Cruzado e do Observatório das Favelas, por outro, expôs a disputa sobre quem fala em nome da sociedade. O governo estadual usou os percentuais de aprovação para construir a narrativa de que a operação representava o “sentimento do povo”, enquanto os institutos independentes demonstravam a fragmentação dessa percepção quando o recorte era territorial.
Especialistas em comunicação política, como o professor Geraldo Tavares (UFRJ), analisaram essa diferença como parte de um processo de “fabricação de consenso punitivo”, no qual o medo e a sensação de desordem são transformados em instrumentos de legitimação do uso da força. Segundo Tavares, “a pesquisa é tratada como prova moral, não como dado empírico. O que se busca medir não é a verdade, mas o sentimento de ordem”.
A edição de outubro de 2025 do Código Aberto, em artigo que se tornou viral, retomou essa discussão à luz da Operação Contenção. O texto destacou que, ao classificar o Comando Vermelho como organização de perfil narcoterrorista, o governo fluminense produziu um novo enquadramento discursivo: o da segurança nacional aplicada ao território interno. Essa mudança de paradigma, apoiada em pesquisas de opinião e sustentada pelo respaldo popular, coloca em xeque os limites entre a ação policial e o poder militar.
Os dados da Atlas confirmam essa transição simbólica. Ao mostrar que 61% dos brasileiros apoiam o enquadramento das facções como terroristas, a pesquisa revela uma adesão social crescente à lógica do “inimigo interno”. No mesmo levantamento, 52% defendem que o Exército atue em conjunto com as polícias, e 68% concordam que as facções ameaçam a segurança nacional.
Essa convergência entre discurso político, operação letal e aprovação social sinaliza a consolidação de um modelo de narcopolítica de Estado, em que a fronteira entre o combate ao tráfico e o controle social se dilui. A legitimação popular de práticas excepcionais cria o ambiente para a consolidação de um narcoestado institucionalizado, onde o uso da força passa a ser não apenas autorizado, mas moralmente exigido.
Os levantamentos revelam que a Operação Contenção não foi apenas um evento policial, mas um espelho do imaginário nacional. O medo tornou-se ativo político, e a violência, linguagem de poder. Enquanto as instituições civis denunciam o retrocesso humanitário, parte expressiva da sociedade, influenciada por anos de pânico midiático, vê na força a única via de salvação.
A pavimentação de um narcoestado não ocorre por decreto, mas pela soma de gestos: um relatório que chama o crime de terrorismo, uma operação que transforma a favela em teatro de guerra, uma pesquisa que traduz o medo em aprovação. A disputa de narrativas sobre a Operação Contenção é, portanto, o retrato de um país que se olha no espelho da violência e hesita entre a lei e o abismo.
Pós-operação

A Delegacia de Homicídios da Capital (DHC) conduz a investigação das 121 mortes registradas oficialmente na Operação Contenção. Cada caso deverá ser individualmente periciado sob acompanhamento do MPRJ e da DPU. O volume de vítimas e a destruição de vestígios aumentam o risco de impunidade, motivo pelo qual a decisão de Alexandre de Moraes sobre a preservação integral de provas é considerada um marco jurídico.
No campo político, o governo estadual reafirmou a operação como um êxito estratégico. “A Contenção devolve à sociedade a confiança nas forças de segurança”, afirma o relatório entregue ao Supremo Tribunal Federal. Já as organizações civis insistem que ela consolidou a militarização da segurança pública e a banalização da morte.
A Operação Contenção foi concebida como uma resposta técnica e planejada ao crime organizado, mas terminou como a ação mais letal da história recente do Brasil. De um lado, o aparato jurídico e militar que sustentou sua legalidade formal. Do outro, o testemunho dos moradores, que revela uma realidade de corpos abandonados, execuções e medo.
Os relatórios oficiais afirmam que o objetivo era proteger a sociedade. As vozes da Vila Cruzeiro mostram que a sociedade, ali, era a vítima. O futuro das investigações determinará se a Operação Contenção será lembrada como o auge da eficiência tática do Estado ou como o episódio em que a linha entre justiça e barbárie foi definitivamente cruzada.
No plano nacional, o episódio repercutiu durante a COP 30, em Belém, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez sua única manifestação pública sobre o tema. Diante da imprensa internacional, afirmou que a ordem do juiz era para que fossem cumpridos mandados de prisão, não para uma matança, e que, no entanto, houve uma matança.
Acrescentou que era importante verificar as circunstâncias em que ocorreu. Em outro momento, Lula declarou que a dura realidade é que, em termos de número de mortos, alguns podem considerar a operação um sucesso, mas, do ponto de vista da ação estatal, acreditava que havia sido desastrosa.
A fala de Lula foi interpretada como um reparo moral, mais analítico que emocional, e marcou o primeiro distanciamento explícito do governo federal em relação à narrativa de sucesso construída pelo governo fluminense.
No dia 29 de outubro, um dia após a operação, o Governo do Brasil veiculou em suas redes sociais uma peça publicitária institucional com o título “Explicando a operação policial no Rio de Janeiro com inteligência”. O vídeo, que também funcionou como divulgação da PEC da Segurança Pública, retomava o tema do combate ao crime organizado sob outra ótica: a da inteligência contra a violência.
A comunicação federal assumiu, assim, uma postura ambivalente. De um lado, reconheceu o sentimento popular de medo e indignação com o avanço das facções. De outro, propôs uma resposta baseada em planejamento e integração, e não em ações de extermínio.
Nos dias seguintes, o governo lançou uma série de publicações digitais com estética mais sóbria e linguagem direta, voltadas ao combate ao crime organizado e à valorização das forças policiais. Diferente de campanhas anteriores, essas peças adotaram tons escuros e trilhas graves, com apelo emocional contido e ênfase no conceito de “segurança com inteligência”.
No dia 31 de outubro, o governo federal fez ainda uma publicação de Halloween com o título “Histórias de terror”. A peça, que anunciava o crescimento dos empregos formais no país, ironizava o medo e o pânico social como narrativas políticas. A apropriação da semântica do terror, em um contexto em que o termo “terrorismo” começava a ser aplicado às facções, serviu como comentário implícito à confusão conceitual que dominava o debate público.
Enquanto isso, governadores da Bahia e do Ceará divulgaram dados de suas próprias operações contra o crime organizado, ressaltando a ausência de mortes de policiais e civis. As publicações, em tom discreto, destacavam que segurança pública se mede por inteligência, não por letalidade.
Essas manifestações simultâneas, o discurso presidencial, a estratégia de comunicação federal e as mensagens dos estados nordestinos revelam o divisor de águas que a Operação Contenção representou. Ela demarcou o contraste entre dois modelos de segurança pública: o da força imediata, com legitimidade popular e alto custo humano, e o da integração institucional, que aposta na inteligência e na contenção da violência como resposta de Estado.
A Contenção encerra um ciclo e inaugura outro. Mais do que uma megaoperação, tornou-se símbolo das contradições de um país em que o medo legitima a força, a força confunde-se com poder e o poder, muitas vezes, se distancia da lei. Se a Operação Contenção será lembrada como vitória ou tragédia dependerá menos dos tribunais e mais da capacidade do Brasil de reaprender a distinguir entre autoridade e crueldade, entre justiça e matança.
cerco e a deflagração.




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