Trump, o tarifaço e o fim do “complexo de vira-lata” do Brasil?
- Rey Aragon
- 30 de jul.
- 5 min de leitura
Atualizado: 31 de jul.

Uma análise detalhada do artigo da The New Yorker revela como a ofensiva de Donald Trump expõe a disputa pela soberania brasileira em um cenário de guerra híbrida e dependência estrutural
O tarifaço de 50% imposto pelos Estados Unidos sobre produtos brasileiros abriu uma crise geopolítica que vai muito além da economia. Em artigo recente, a The New Yorker questiona se o Brasil estaria deixando para trás seu histórico “complexo de vira-lata”. Mas será que a narrativa se sustenta? E o que está realmente em jogo para o país?
Em 30 de julho de 2025, a revista The New Yorker publicou um artigo provocativo assinado pela jornalista Shannon Sims: “Is Brazil’s Underdog Era Coming to an End?” (em tradução livre, “A era de vira-lata do Brasil está chegando ao fim?”). O texto toma como ponto de partida o famoso conceito cunhado por Nelson Rodrigues – o “complexo de vira-lata”, a autopercepção de inferioridade que atravessaria a identidade nacional – para interpretar a recente ofensiva de Donald Trump contra o Brasil. A jornalista sugere que o tarifaço de 50% imposto pelos Estados Unidos e a resposta do governo Lula poderiam marcar o início de uma virada histórica: o fim da submissão e a consolidação de uma postura mais soberana diante do mundo. À primeira vista, a narrativa é sedutora. Mas quando observada por um prisma soberanista e materialista histórico, ela exige camadas adicionais de análise. O que está em jogo não é apenas psicologia nacional, mas estruturas de dependência econômica, tentativas
O tarifaço de 50% e a leitura política
O artigo da The New Yorker acerta ao identificar que o tarifaço de Trump não tem motivação puramente econômica. Em 9 de julho, o presidente norte-americano enviou uma carta a Lula anunciando que tarifas de 50% passariam a valer a partir de 1º de agosto. O tom do documento foi menos técnico do que político: deixava claro que a medida estava ligada a tensões com as instituições brasileiras, especialmente no contexto da inelegibilidade de Jair Bolsonaro até 2030.
O texto da revista mostra ainda que, ao atingir cadeias estratégicas, o tarifaço fortaleceu Lula no plano interno, dando-lhe um discurso de defesa da soberania. Pesquisas da Quaest indicaram crescimento da aprovação do presidente após a ameaça tarifária. Essa leitura é consistente com o efeito que choques externos costumam provocar em países do Sul Global: crises impostas por potências estrangeiras frequentemente reforçam narrativas nacionalistas.
No entanto, há um ponto que a análise da The New Yorker subestima: o alcance real da medida. A ordem executiva assinada em 30 de julho incluiu uma lista de exceções (aeronaves civis, ferro-gusa, polpa de madeira, energia e fertilizantes, entre outros). Ou seja, a tarifa de 50% não recai sobre todos os produtos brasileiros – algo crucial para entender quem perde, quem é protegido e quais setores terão maior impacto. A ausência desse detalhe gera a impressão de uma ruptura total, quando, na verdade, se trata de um ataque calibrado para produzir pressões políticas sem provocar danos excessivos à indústria norte-americana.
Dependência estrutural e soberania em disputa

Quando a jornalista norte-americana fala do “complexo de vira-lata”, ela toca em um ponto real da cultura política brasileira. Mas o que a abordagem cultural tende a ocultar são as relações estruturais de dependência que mantêm o Brasil em posição subordinada na economia global.
O superávit comercial recorrente dos Estados Unidos nas trocas com o Brasil é um dado objetivo que desmente qualquer justificativa econômica para o tarifaço. O real objetivo de Trump é reforçar os mecanismos de tutela que garantem a vulnerabilidade brasileira – e, consequentemente, a margem de manobra dos EUA no tabuleiro geopolítico. Essa lógica é antiga: vai do alinhamento forçado na Guerra Fria à pressão recente sobre políticas industriais, minerais estratégicos e tecnologia.
A The New Yorker captura a reação emocional de parte do público brasileiro diante da medida de Trump, mas não explora as engrenagens dessa dependência. Um exemplo é a guerra híbrida que se manifesta em múltiplos níveis: pressões econômicas, campanhas de desinformação, tentativas de desmoralização institucional e uso do sistema financeiro internacional como arma.
O risco da extrapolação e a materialidade da crise
O artigo norte-americano sugere que a crise do tarifaço poderia simbolizar o fim da “era underdog” do Brasil. Essa projeção, no entanto, ignora a materialidade dos custos sociais e econômicos que virão quando a tarifa de 50% começar efetivamente a produzir efeitos.
Setores como o agronegócio, a siderurgia e a exportação de alimentos já preveem prejuízos. Suco de laranja, café e carne bovina – produtos com forte peso na pauta exportadora – podem sofrer retração significativa, caso não sejam incluídos nas exceções. A reação desses setores, historicamente próximos do Congresso, pode reabrir fissuras políticas no país.
Essa é a principal armadilha de narrativas puramente simbólicas: a coesão nacionalista de curto prazo pode se dissolver quando o impacto real da crise recair sobre empregos, renda e arrecadação. E é precisamente nesse descompasso que as potências hegemônicas operam: primeiro desestabilizam, depois exploram as fragilidades políticas internas para condicionar políticas públicas.
A disputa é maior que o comércio
Um ponto positivo da análise da The New Yorker foi destacar como a ofensiva tarifária fortaleceu a narrativa de Lula como defensor da soberania. Mas essa dinâmica precisa ser compreendida como parte de uma disputa muito mais ampla: a luta pela autonomia política e informacional do Brasil.
Nos últimos meses, as tensões em torno do papel das plataformas digitais, da inelegibilidade de Bolsonaro e da regulação de Big Techs revelaram que a soberania do país não está ameaçada apenas por tarifas, mas também por mecanismos sofisticados de influência. A ordem de suspensão do X/Twitter no Brasil, por exemplo, foi retratada no artigo da revista como um sinal de força do Estado. Mas a leitura precisa ser cautelosa: a suspensão foi uma reação a uma plataforma usada como vetor de desinformação, e não um sinal de coesão definitiva.
O tarifaço de Trump, portanto, deve ser lido não como um evento isolado, mas como parte de uma estratégia de pressão multifacetada. Ele combina sanções econômicas seletivas, apoio tácito a setores desestabilizadores e a instrumentalização de fluxos informacionais globais para enfraquecer projetos de desenvolvimento autônomo no Brasil.
O que está em jogo
A grande pergunta não é se o Brasil está deixando de ser “vira-lata”, mas se o país será capaz de construir um projeto de soberania real. Isso envolve mais do que orgulho nacional. Requer enfrentar os gargalos estruturais de uma economia periférica, reduzir a dependência tecnológica e financeira, defender os interesses estratégicos em cadeias de minerais críticos e consolidar um sistema de comunicação soberano.
O artigo da The New Yorker cumpre um papel relevante ao apresentar ao público internacional uma leitura simbólica da crise. Mas, para os brasileiros, é fundamental ir além da narrativa cultural e compreender que o tarifaço de Trump é apenas a face visível de uma guerra híbrida em curso. Uma guerra que se joga no câmbio, nos tribunais, nas plataformas digitais e nas cadeias de suprimento globais.
Se o Brasil será capaz de superar essa condição, não será apenas por abandonar o “complexo de vira-lata”, mas por construir as bases materiais de uma soberania duradoura. Política e o lugar do Brasil na engrenagem da guerra híbrida global.
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