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Centrão, máquina de fazer vilão

  • Foto do escritor: Sara Goes
    Sara Goes
  • há 2 dias
  • 4 min de leitura

Como o bloco mais poderoso do Congresso transforma crises em moeda de troca e molda o destino político do Brasil


O Centrão deixou de ser mero coadjuvante para se tornar a engrenagem central da política brasileira. Sem ideologia fixa e com apetite insaciável por cargos e verbas, o bloco atua como intermediário indispensável entre o Executivo e a elite econômica, explorando fragilidades institucionais e crises políticas para ampliar seu poder. De 1988 a 2025, sua trajetória revela como a “máquina de fazer vilão” se adaptou aos novos tempos, consolidando-se como árbitro silencioso do jogo político nacional.

Origem e perfil do Centrão



O centrão é a engrenagem mais eficiente já criada para corroer a política brasileira a partir de dentro. Sua composição atual foge à velha fórmula da elite nacional que dominou o país durante séculos. Não é formado pelos quadros tradicionais da oligarquia paulista ou carioca, tampouco pelos herdeiros orgânicos do pacto escravocrata que estruturou os grandes partidos liberais. É um agrupamento de outsiders, muitos oriundos do Nordeste e do Centro-Oeste, que chegaram ao poder pela força de base eleitoral local e pelo domínio de redes clientelistas capazes de operar nas franjas do Estado.

Estratégia e funcionamento da máquina de poder



Esse perfil rompe com a imagem clássica de “representantes da classe dominante” e cria uma dinâmica própria. O centrão não se move por compromissos ideológicos ou pela defesa direta de interesses industriais, financeiros ou midiáticos. Seu combustível é a chantagem permanente contra governos de qualquer matiz, exigindo cargos, verbas e privilégios para manter a governabilidade. É um poder que não se submete aos comandos da elite econômica, mas também não a afronta frontalmente. A classe dominante o tolera porque sabe que, apesar do custo, ele garante uma espécie de estabilidade funcional ao sistema.


Como na rima de Jesus Chorou, em que “a máquina de fazer vilão” se alimenta do abandono e da ausência de oportunidades, o centrão sobrevive das rachaduras institucionais e de um ambiente permanentemente instável. Toda fragilidade do Executivo ou desordem no Congresso amplia seu poder de barganha. Cada escândalo, impasse orçamentário ou crise de confiança é convertido em moeda de troca.

Reconfiguração política e expansão após 2016



Tal cenário se agravou a partir da ruptura da ordem democrática em 2016, quando setores conservadores e liberais tradicionais se aliaram a forças ultraliberais e a interesses externos para afastar uma presidente sem crime de responsabilidade. Nesse processo, que desmontou políticas públicas e entregou setores estratégicos a empresas estrangeiras, o centrão aprendeu que podia ocupar o vácuo deixado por uma elite que, ao ceder o comando do país ao capital especulativo internacional, comprometeu sua própria capacidade de mando. Essa elite suicida abriu caminho para que operadores políticos sem laços diretos com os antigos donos do poder assumissem o controle do Congresso.


O centrão funciona como uma espécie de “terceirização” da articulação política, descrita em estudos sobre o sequestro da política pelo capital: um bloco que negocia diretamente com governos, mas mantém relações indiretas e utilitárias com o grande empresariado, prestando o serviço de domesticar a pauta legislativa e bloquear iniciativas contrárias ao status quo econômico.

Estudos de caso: ocupação do Congresso e histórico de atuação



Um exemplo recente dessa lógica ocorreu durante a ocupação dos plenários da Câmara e do Senado por parlamentares do PL e de partidos aliados, em agosto de 2025. O ato, inédito desde a redemocratização, foi deflagrado no contexto da prisão domiciliar de Jair Bolsonaro, determinada pelo Supremo Tribunal Federal, e tinha como bandeira a anistia aos envolvidos nos atos golpistas e o impeachment do ministro Alexandre de Moraes. Sob o pretexto de obstruir a pauta, os parlamentares transformaram o protesto em ação física, pernoitando nas mesas diretoras, acorrentando-se e bloqueando os trabalhos legislativos, apesar de o regimento não reconhecer ocupações como forma legítima de obstrução.


À frente da Câmara, Hugo Motta não agiu para encerrar de imediato a ocupação. Pelo contrário, tolerou o impasse, permitindo que o ato se prolongasse e ampliasse o desgaste do governo. Ao apertar e afrouxar a coleira da fera, manteve-se como intermediário indispensável para a retomada da normalidade. Assim, o centrão transformou mais uma crise em oportunidade de ampliar seu poder de barganha, sem se comprometer diretamente com o radicalismo do protesto nem com a defesa aberta do Executivo.


Exemplos recentes confirmam essa lógica. Na Constituinte de 1988, o centrão original surgiu como bloco de pressão disposto a negociar, garantindo concessões mútuas num pacto político ainda em formação. Já no golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, sua postura foi radicalmente diferente: sustentou o governo até sentir o momento certo de abandoná-lo, somando-se a uma aliança entre forças conservadoras, ultraliberais e interesses externos que violou a normalidade democrática e desmontou políticas públicas. Nos governos Temer e Bolsonaro, consolidou sua autonomia com o uso do orçamento secreto, transformando-o em arma central de poder e ampliando sua capacidade de agir sem depender diretamente da elite econômica. Hoje, no terceiro governo Lula, o centrão se reposiciona como árbitro das pautas estratégicas, consciente de que nenhum projeto nacional se sustenta sem sua anuência.

Mecanismo de reprodução e permanência do Centrão



Essa engrenagem pega políticos marginais ao eixo do poder tradicional e os transforma em operadores indispensáveis. Absorve prefeitos, vereadores e deputados regionais e os adapta à lógica da chantagem e da sobrevivência, formando uma rede de operadores treinados para extrair ganhos pessoais do cargo e prolongar o ciclo de dependência política. Como na música, essa máquina não se contenta em existir: precisa produzir constantemente novos vilões para seguir funcionando.


Enquanto a elite nacional se afasta do comando direto e o mercado financeiro global dita as grandes diretrizes, o centrão opera no território, no varejo da política, onde se decide o ritmo e a intensidade da governabilidade. É a expressão mais acabada de uma política que, sequestrada de seu sentido original de serviço ao povo, virou instrumento de autopreservação e lucro privado. E, tal como o sistema que inspirou a metáfora dos Racionais MCs, continuará funcionando enquanto houver terreno fértil de crise e abandono para nutrir sua engrenagem.

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