Como o filho de R. R. Soares virou articulador de uma disputa trilhardária (longe dos templos)
- Sara Goes
- 4 de set.
- 15 min de leitura
Enquanto o STF julga Jair Bolsonaro e o núcleo do golpe de 8 de janeiro, a Câmara discute o futuro digital do Brasil. Na audiência sobre data centers, o deputado evangélico David Soares surpreendeu ao assumir papel de articulador, revelando o peso do lobby das Big Techs e a disputa entre soberania real e colônia digital
Bloco 1 – A cena e o personagem

Na manhã de 3 de setembro de 2025, o plenário 13 do Anexo II da Câmara dos Deputados se transformou em arena de um debate decisivo para o futuro digital do Brasil. A Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação abriu audiência pública para discutir o Projeto de Lei 1680 de 2025, que propõe a criação das chamadas Zonas Especiais de Processamento e Armazenamento Digital, as ZEPADs. O tema parecia restrito a engenheiros, economistas e especialistas em regulação, mas o contexto era tudo menos técnico.
Enquanto os parlamentares se acomodavam diante de telas e relatórios, o país acompanhava, em outro espaço institucional, o julgamento mais importante de sua história recente. No Supremo Tribunal Federal, Jair Bolsonaro e o núcleo central do golpe que culminou no ataque de 8 de janeiro de 2023 enfrentavam a mais grave acusação já feita a um ex-presidente desde a redemocratização. A tensão entre os dois cenários era simbólica: de um lado, a prestação de contas pela tentativa de ruptura da ordem constitucional, de outro, a disputa pelo controle da infraestrutura que sustenta a democracia no século XXI, os dados, os algoritmos e os centros de processamento.

Coube a David Soares (União - SP), deputado evangélico e filho do missionário R. R. Soares, abrir a reunião e conduzir os trabalhos. Até então mais conhecido por sua atuação em pautas morais e pelo alinhamento com a direita conservadora, como quando propôs o perdão de dívidas tributárias de templos estimadas em até um bilhão de reais, ele também vem construindo, de forma consistente, um perfil de legislador atento à agenda digital. Foi autor do Projeto de Lei 469 de 2024, que proibiu a cobrança de fair share, uma taxa defendida por operadoras de telecomunicações para impor custos às grandes plataformas digitais, posicionando-se como aliado das Big Techs em uma disputa econômica global. Assumiu a relatoria do próprio PL1680 de 2025, e já havia relatado o PLP 81 de 2022, que blindou os fundos de telecomunicações contra bloqueios orçamentários.

Sua atuação também se estendeu a iniciativas como a visita ao Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR para conhecer o modelo brasileiro de governança da Internet. Mais recentemente, ganhou destaque ao propor a criação de uma CPI para investigar a atuação da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID) nas eleições brasileiras, após as denúncias apresentadas pelo ex-funcionário do Departamento de Estado norte-americano, Mike Benz, sobre interferência externa no pleito de 2022.
Esses movimentos consolidaram sua imagem não apenas como um deputado conservador de base evangélica, mas como um dos arquitetos da política digital brasileira, transitando entre o interesse religioso que herdou da família e a articulação técnica de um setor bilionário, agora acrescida pela pauta da soberania nacional diante da ingerência estrangeira.
A resposta para a estranheza de vê-lo à frente de uma pauta como essa não estava apenas na ata da reunião, mas no movimento mais amplo de reconfiguração do poder no Brasil. Ao mesmo tempo em que se julgava o passado golpista, discutia-se como blindar o futuro digital. David Soares assumia o microfone com a autoridade de autor de um dos requerimentos que deram origem à audiência. O gesto carregava simbolismo: a política conservadora, que alimentou a narrativa do golpe, passava a disputar também o vocabulário da soberania informacional.
A sessão começava, portanto, marcada por essa dupla dimensão. O destino de Bolsonaro era decidido a poucos quilômetros dali, enquanto, no plenário da Comissão, se travava outra batalha, menos ruidosa, mas igualmente estratégica. O Brasil debatia se teria autonomia sobre seus dados ou se se consolidaria como colônia digital.

Bloco 2 – O palco institucional e os atores em disputa

Não houve menção a Deus, bênção ou referência a orientação divina, como é de praxe quando parlamentares evangélicos abrem audiências na Câmara. David Soares limitou-se à formalidade prevista no regimento. A ausência do ritual religioso foi eloquente. Naquela manhã, o discurso não era sobre fé, mas sobre infraestrutura crítica, algoritmos e soberania digital. Soares, que nas últimas sessões já vinha se apresentando como voz interessada em temas de inovação, tecnologia e regulação, presidia uma mesa povoada por representantes de associações empresariais, acadêmicos e executivos de multinacionais.
O primeiro a falar foi Luiz Tossi, vice-presidente da Associação Brasileira de Data Center (ABDC), organização que reúne mais de 200 associados ligados à construção e operação de data centers no país. Ele apresentou números otimistas: “Hoje o Brasil tem em torno de 180 data centers comerciais, com parque instalado em torno de 700 MW. Em número de data centers, somos o 11º país em representatividade de mercado.” Tossi destacou ainda uma “janela de oportunidade gigantesca” para atrair instalações de inteligência artificial, condicionada a incentivos fiscais e rapidez nos processos de licenciamento.
Na sequência, falou Basílio Perez, vice-presidente da Associação Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações (Abrint), que representa cerca de 2.500 pequenos e médios provedores regionais responsáveis por mais de 60% da banda larga fixa no Brasil. Perez fez questão de ressaltar: “Se não houvesse as pequenas empresas no Brasil, mais da metade da população estaria sem internet de qualidade.” Ele alertou para os riscos de centralizar decisões sobre as ZEPADs apenas no Executivo e defendeu que os ISPs regionais fossem incluídos na formulação de critérios técnicos, sob pena de exclusão de parte significativa da infraestrutura nacional.
O tom se deslocou quando entrou em cena Michael Mohallem, gerente de relações governamentais da Google Cloud, braço de computação em nuvem da gigante estadunidense. A empresa, que desde 2017 mantém infraestrutura no Brasil, defendeu que os data centers sejam tratados como infraestrutura crítica. “Os data centers são reconhecidos como infraestruturas fundamentais, infraestruturas críticas nas nossas sociedades.” Para Mohallem, a competitividade do país dependeria de previsibilidade tributária, rapidez em licenciamento e clareza regulatória.
A mesa também contou com José Goutier Rodrigues, gerente de políticas públicas da Positivo Tecnologia, uma das maiores fabricantes nacionais de computadores e responsável por supercomputadores adquiridos pela Petrobras. Ele destacou a capacidade instalada da indústria nacional e lembrou que grandes máquinas como o Atlas e o Fênix foram montadas no Brasil com tecnologia local. “A indústria nacional tem capacidade, tem qualidade.”
Na representação do governo, falou Cristiane Rauen, diretora do Departamento de Transformação Digital e Inovação do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). Ela reforçou o alinhamento da pauta à Nova Indústria Brasil, plano que prevê digitalizar metade das empresas industriais até 2030. “Dados são o principal ativo econômico da atualidade… nenhum país do mundo pode se furtar de participar de um processo em que se beneficie de uma infraestrutura digital com prontidão para processamento e armazenamento de dados.”
A voz mais dissonante foi a de Jorge Arbache, professor de economia da Universidade de Brasília (UnB) e ex-vice-presidente do Banco do Brasil. Ele fez um alerta sobre os riscos de repetir experiências internacionais. “O consumo de energia pelos data centers é algo absurdamente elevado… será a maior fonte de consumo de energia pelas próximas décadas em níveis desconhecidos por nós todos.” Arbache citou o caso da Virgínia, nos Estados Unidos, onde o adensamento de data centers provocou inflação de energia e água, com impacto direto na população. Também questionou a promessa de empregos: “Quanto esses investimentos geram de emprego? Praticamente nada. Qual é o impacto nas cadeias regionais de valor? Quase nenhum.”
Entre o otimismo empresarial e as advertências acadêmicas, a audiência revelava o tamanho da encruzilhada. Enquanto empresas pressionavam por redução de impostos e regras flexíveis, Arbache insistia que a conta energética e hídrica poderia recair sobre os brasileiros.
Bloco 3 – REDATA, o eixo do lobby e a disputa política

O centro de gravidade da audiência foi o Regime Especial de Data Centers (REDATA), discutido pelo Ministério da Fazenda em coordenação com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), o Ministério de Minas e Energia (MME) e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Desde abril, a política vem sendo apresentada a executivos como um conjunto de desonerações sobre investimentos em equipamentos de tecnologia da informação, com isenção de PIS, Cofins, IPI e imposto de importação, atrelada a compromissos de energia 100 por cento renovável e outras contrapartidas, segundo fontes oficiais e reportagens especializadas. As estimativas circulam no governo: até 2 trilhões de reais em investimentos em dez anos, caso a medida avance.
A poucos dias da audiência, novas peças entraram em jogo. O governo editou a Medida Provisória 1.307 de 2025 para permitir benefícios a serviços, inclusive data centers, em Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs). A medida criou uma rota paralela de incentivos enquanto o REDATA não saía do papel. Especialistas alertaram que a via das ZPEs tende a favorecer operações voltadas ao exterior, sem aliviar o déficit doméstico de processamento.
No plenário, executivos e associações pediram celeridade. “Hoje já existe uma tendência de maior adensamento de data center próximo aos centros consumidores", disse Luiz Tossi, da Associação Brasileira de Data Center (ABDC). Ao defender o REDATA, Tossi classificou o programa como decisão de competitividade, não como renúncia. “O REDATA não é um projeto de renúncia fiscal, ele é uma medida provisória que busca uma atração de investimento, focado na redução de impostos de importação… principalmente em GPUs e equipamentos de TI de alta performance.” Segundo ele, a cadeia de construção, operação e serviços seguiria tributada, o que compensaria o alívio sobre hardware.
Pelo governo, a linha foi pragmática. O Ministério da Fazenda promoveu a política como combinação de agenda verde e agenda digital, com prioridade para energia limpa e previsibilidade regulatória. Reportagens registraram que o Planalto também calibrava a diplomacia econômica, reduzindo atritos com Washington, inclusive ao rever planos de taxar grandes empresas de tecnologia, e que via no REDATA um sinal de boa vontade em meio à escalada tarifária americana e à busca de investidores em nuvem e inteligência artificial.
Críticas se avolumaram à medida que a política ganhou contornos. A jornalista Laís Martins mostrou que, apesar do discurso de sustentabilidade, o Ministério do Meio Ambiente ficou à margem das reuniões sobre a Política Nacional de Data Centers e que faltavam avaliações ambientais robustas para a escala de empreendimentos pretendida. A mesma cobertura questionou o custo fiscal em troca de promessas difusas de emprego e arrecadação.
No campo investigativo, o jornalista Reynaldo Aragon foi um dos primeiros a sistematizar o alerta sobre dependência de infraestrutura privada estrangeira, a ideia de “nuvem soberana” sustentada por contratos com provedores dos Estados Unidos e o risco de o Brasil converter uma vantagem energética em plataforma de extração de valor por empresas estrangeiras. Sua crítica coloca o REDATA como peça de um tabuleiro maior, onde soberania se confunde com intermediação privada de serviços essenciais.
A pressão por contrapartidas apareceu na audiência. Michael Mohallem, do Google Cloud, qualificou data centers como infraestrutura crítica e defendeu previsibilidade regulatória, mas reconheceu o cuidado com compras públicas e critérios de produção local, sob pena de encarecer e engessar a cadeia de suprimentos de alta performance. Cristiane Rauen, do MDIC, ancorou o plano na Nova Indústria Brasil e nas metas de digitalização, reforçando a janela de oportunidade aberta pelo boom de inteligência artificial. Em contraponto, Jorge Arbache, da Universidade de Brasília (UnB), insistiu na materialidade dos custos, “o consumo de energia pelos data centers é algo absurdamente elevado”, e nas experiências negativas de regiões com adensamento de instalações e pressão sobre redes e água.
A dimensão fiscal foi o ponto de maior convergência entre empresas e parte do governo. Reuters e publicações setoriais detalharam o escopo da desoneração, com foco em capital de investimento em TI, enquanto análises jurídicas apontaram que a Medida Provisória das ZPEs funciona como ponte provisória, à espera do regime estruturante do REDATA. O debate sobre impactos distributivos seguiu em aberto, inclusive sobre como repartir riscos e benefícios entre União, estados e municípios.
No Nordeste, onde se concentram projetos estratégicos de energia renovável e grandes terrenos, as controvérsias ganharam cor local. Reportagens do Intercept identificaram empreendimentos em áreas de estresse hídrico e falta de transparência sobre consumo de água, o que tensiona a narrativa de sustentabilidade automática. A discussão cruzou ainda interesses portuários e de cabos submarinos, como no Complexo do Pecém, com a hipótese de grandes operações de nuvem a partir do litoral cearense.
Politicamente, o REDATA expõe uma equação sensível. O ministro Fernando Haddad busca destravar investimentos, reduzir custos de capital e usar a energia limpa como vantagem comparativa, sem fechar portas com os Estados Unidos e com as plataformas que concentram o mercado de nuvem. Críticos pedem salvaguardas ambientais e digitais, metas claras de conteúdo nacional possível, reservas de capacidade para setor público e ciência, regramento de uso de água e energia e transparência nos dados de impacto. O relato jornalístico internacional resume a dúvida central: os incentivos são generosos, mas o ganho líquido para o país ainda carece de prova e de parâmetros verificáveis, sobretudo se a política não vier acompanhada de governança, métricas e fiscalização.
Na comissão, a costura política se moveu nesse fio. David Soares conduziu a mesa em torno de convergências mínimas, energia renovável, eficiência e marcos claros, enquanto divergências de fundo permaneciam: a promessa de atração de capital versus as condicionalidades para que o país não se resigne ao papel de colônia digital. O próximo passo depende do texto que chegará ao Congresso, das salvaguardas que sobreviverem à influência de lobbies e da capacidade do governo de apresentar contrapartidas mensuráveis para a sociedade.
Bloco 4 – Soberania digital, riscos ambientais e o silêncio sobre o Nordeste

A audiência pública da Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação expôs o peso das entidades empresariais e das grandes plataformas, mas também deixou claro quem estava ausente. Nenhum representante de universidades, governos ou movimentos do Nordeste foi convidado a falar, apesar de a região concentrar projetos estratégicos de energia renovável, grandes terrenos para instalação de data centers e portos preparados para receber cabos submarinos, como o Complexo do Pecém, no Ceará.
Esse silêncio contrastou com a centralidade que o Nordeste ocupa nas projeções do setor. Estudos do próprio governo apontam que o adensamento de data centers tende a ocorrer em áreas com disponibilidade energética e proximidade de infraestrutura de exportação de dados. A região reúne essas condições, mas a audiência se restringiu a vozes de São Paulo, Brasília e multinacionais, num desenho que reforça a percepção de que as decisões são tomadas longe dos territórios diretamente impactados.
As falas de Jorge Arbache, professor da Universidade de Brasília (UnB), ecoaram como contraponto às expectativas empresariais. Ele alertou para o consumo crescente e desigual de recursos essenciais. “O consumo de energia pelos data centers é algo absurdamente elevado. Será a maior fonte de consumo de energia pelas próximas décadas em níveis desconhecidos por nós todos.” Arbache enfatizou que o problema não é apenas a disponibilidade de energia renovável no grid, mas o efeito inflacionário sobre a sociedade. “No estado da Virgínia, nos Estados Unidos, existe uma inflação de energia e de água por conta do grande consumo de data centers. Toda a população paga por essa inflação.”
O professor foi ainda mais incisivo ao tratar da água. Contestou a narrativa repetida por executivos de que o reuso elimina riscos. “A água de reúso é o plano B para quando acabar a água convencional. Se você compromete a água de reúso, vai ter que ir para o plano C. E qual é o plano C? Água dessalinizada. Só que a água dessalinizada é várias e várias vezes mais cara.” Para Arbache, a apresentação de circuitos fechados como solução definitiva é uma farsa que ignora a realidade das bacias e a vulnerabilidade das populações locais.
A questão hídrica é especialmente sensível no semiárido nordestino. A ausência de especialistas regionais impediu que se discutisse a vulnerabilidade de bacias hidrográficas e o risco de sobrecarga em sistemas de reuso ou dessalinização. “Não há como desconsiderar esse tipo de questão, porque senão você vai levar para as demais pessoas, para o estado, para o governo e outros mais, todo o custo, não só da infraestrutura, mas também da inflação que poderá haver nesse setor.”
Outro ponto negligenciado foi a relação entre soberania digital e desenvolvimento regional. Enquanto executivos como Michael Mohallem, da Google Cloud, defendiam previsibilidade regulatória para atrair investimentos, não houve espaço para discutir contrapartidas em pesquisa, capacitação e digitalização de escolas e universidades nordestinas. Arbache sugeriu que data centers contribuam com programas locais de inovação, mas sua fala não encontrou eco entre os parlamentares presentes.
O contraste entre a promessa de até 2 trilhões de reais em investimentos e a ausência de debate sobre onde e como esses recursos se materializariam reforça a crítica de que o Brasil pode se transformar em plataforma de processamento subordinada às Big Techs, sem garantir redistribuição territorial dos benefícios. O Nordeste, mais uma vez, aparece como vitrine para anúncios e como território de instalação, mas não como sujeito do debate político.
Bloco 5 – O fio histórico, o lobby e o papel inusitado de David Soares

O debate sobre data centers não nasceu com o Projeto de Lei nº 1.680/2025. Ele é herdeiro de uma trilha legislativa que remonta ao PL nº 5.441/2020, apresentado ainda no governo Bolsonaro, quando a agenda digital começou a ser ocupada por bancadas antes distantes do tema. Aquela proposta buscava criar regras para infraestrutura crítica, mas foi arquivada sem tramitação robusta. A volta do tema em 2025, em plena explosão da inteligência artificial, revela o quanto a pressão de empresas e associações amadureceu, transformando um assunto técnico em prioridade política.
Essa transformação se deve, em grande parte, à força do lobby das Big Techs e das entidades que orbitam o setor. Como mostrou investigação recente, companhias como Google, Meta e TikTok têm recrutado ex-policiais, promotores e delegados para assumir postos de relações institucionais. O objetivo é claro: emprestar o ethos da lei e da ordem às plataformas e apresentá-las não como parte do problema, mas como solução. Essa “blindagem simbólica” se reflete no discurso uníssono observado em várias audiências, em que autoridades e representantes empresariais repetem a mesma lógica: deslocar a responsabilidade estrutural das plataformas e repassá-la a indivíduos e famílias.
A normalização da presença de intermediários privados, como a empresa Kodex, pouco conhecida do público, mas já atuando como elo terceirizado entre autoridades e plataformas, ilustra o quanto o processo legislativo passou a ser atravessado por atores que não respondem ao mesmo controle democrático exigido do Estado. Esse cenário cria um ambiente propício para que projetos de lei estratégicos sejam moldados por quem tem maior capacidade de mobilização econômica e simbólica.
É nesse ponto que o perfil de David Soares ganha relevo como operador político do setor. Essa atuação inusitada revela como o lobby age no Congresso. A presença de Soares na linha de frente cumpre uma dupla função: amplia o alcance da pauta junto a segmentos religiosos e, ao mesmo tempo, sinaliza às empresas que existe uma base parlamentar disposta a defender incentivos fiscais e flexibilizações regulatórias. O contraste entre seu histórico e sua performance técnica reforça a percepção de que o Parlamento se tornou espaço de mediação direta dos interesses das plataformas.
Bloco 6 – Entre soberania real e colônia digital

De um lado, o julgamento histórico de Jair Bolsonaro e do núcleo do golpe de 8 de janeiro de 2023, que expõe as fragilidades da democracia diante da violência institucional e do uso instrumental das plataformas digitais. De outro, o debate sobre data centers e o REDATA, que parece técnico, mas toca no cerne da soberania informacional e no futuro da economia brasileira.
As audiências na Câmara mostraram que a escolha que o país terá de fazer não é apenas entre diferentes regimes de incentivos, mas entre soberania real e colônia digital. As falas de Jorge Arbache sobre o “consumo absurdamente elevado” de energia e a “farsa da água de reúso” indicam que as contradições não se resumem ao custo fiscal. Elas envolvem impactos sociais e ambientais que podem transformar territórios estratégicos em zonas de sacrifício, sem retorno proporcional em empregos, inovação ou arrecadação.
Do outro lado, entidades como a Associação Brasileira de Data Center (ABDC) e gigantes como o Google Cloud pressionam por celeridade, insistindo que a janela de oportunidade é curta e que o Brasil só atrairá grandes investimentos se oferecer incentivos equivalentes aos de outros países. Nesse jogo, o Congresso funciona como arena de mediação, mas também de captura: parlamentares com trajetórias alheias ao tema, como David Soares, assumem papel de articuladores, evidenciando a força do lobby digital.
Cenários futuros

Da audiência emergiu um mapa claro da coalizão de forças em disputa. Grandes empresas de tecnologia e associações setoriais pressionaram pela rapidez nos incentivos. Governadores também demonstraram pressa, de olho no pleito eleitoral iminente e nas promessas de geração de empregos e investimentos regionais. Do outro lado, especialistas, parlamentares e vozes críticas insistiram em contrapartidas ambientais, sociais e tecnológicas. No meio desse tabuleiro, o governo federal atua com orçamento apertado e diante de um Congresso que acena com má vontade quase suicida, tentando calibrar pragmatismo econômico com compromissos de sustentabilidade.
Dessa correlação de forças Reynaldo Aragon desenha três cenários possíveis:
O primeiro é o da integração subordinada, em que o país abre mão de contrapartidas, reduz impostos sobre equipamentos e atrai grandes players estrangeiros, mas sem condições de negociar conteúdo local, pesquisa ou distribuição territorial. É o caminho mais rápido para consolidar o Brasil como hospedeiro periférico da nuvem global.
O segundo é o da soberania regulada, em que incentivos fiscais viriam atrelados a contrapartidas ambientais, sociais e tecnológicas, como reserva de capacidade para universidades e órgãos públicos, fundos de pesquisa e desenvolvimento regionais, e metas de eficiência energética e hídrica. Esse caminho exigiria governança robusta, fiscalização e a capacidade de resistir à pressão concentrada das Big Techs.
O terceiro cenário é o da estagnação, em que o impasse político e a desconfiança mútua atrasam a regulamentação, fazendo com que investimentos migrem para outros países e o déficit de processamento se agrave. Nesse caso, o Brasil ficaria ainda mais dependente de infraestrutura estrangeira, ampliando a vulnerabilidade digital.
No fim, a audiência sobre data centers foi um retrato de como o país lida com escolhas estratégicas: entre a pressa em oferecer isenções e a cautela em construir soberania, entre a promessa de inovação e o risco de sacrificar territórios, entre soberania real e colônia digital. O desfecho dependerá da capacidade do Congresso e do Executivo de transformar diagnósticos em políticas com horizonte de longo prazo, em vez de se contentar com soluções de curto fôlego ditadas pelos lobbies mais poderosos.