Israel exporta censura digital: o novo front da guerra contra a Palestina
- Rey Aragon
- há 10 horas
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Sob o pretexto de compliance e segurança, Israel articula uma rede jurídico-corporativa global para silenciar críticas ao genocídio em Gaza e controlar a narrativa nas grandes plataformas digitais.
Enquanto bombas caem sobre Gaza, uma ofensiva menos visível avança no campo informacional: a censura algorítmica e jurídica que elimina vozes dissidentes sob o disfarce de políticas de “segurança” e “conformidade”. Israel, amparado por conglomerados de tecnologia e pela indústria do compliance ocidental, está transformando a guerra em Gaza em um modelo global de controle narrativo — onde criticar um massacre pode ser tratado como crime.
O silêncio como arma de guerra

Enquanto o mundo contabiliza corpos e ruínas em Gaza, uma outra frente de combate opera em silêncio — e, justamente por isso, é mais eficaz. A guerra contemporânea não se trava apenas com tanques e drones, mas também com algoritmos, termos de uso e decisões corporativas. Israel compreendeu isso cedo. O controle da narrativa tornou-se parte inseparável do esforço militar. A cada bomba que explode, uma campanha digital é desativada; a cada massacre denunciado, uma conta é suspensa sob o pretexto de violar “padrões da comunidade”. A censura é agora uma extensão da artilharia.
Essa ofensiva invisível se apoia na ideia de que calar pode ser mais estratégico do que convencer. Quando uma imagem de uma criança soterrada é removida por “conteúdo sensível”, o dano político que ela causaria é neutralizado. Quando uma voz palestina é acusada de “discurso de ódio”, o enquadramento jurídico substitui o debate moral. E quando plataformas inteiras ajustam seus algoritmos para esconder as palavras “Gaza”, “Nakba” ou “genocídio”, o silêncio se impõe como ferramenta de guerra.
O resultado é um campo de informação colonizado, onde a verdade se torna um bem escasso e a dor, um conteúdo proibido. A guerra, então, deixa de ser apenas o confronto de forças armadas e passa a ser o controle da própria realidade perceptiva. Israel não apenas bombardeia territórios — bombardeia a linguagem, os signos, a memória coletiva. A ocupação já não é apenas geográfica, mas semântica.
Por trás desse processo, há cálculo e método. O silêncio é produzido industrialmente: com políticas de moderação moldadas por pressões diplomáticas, com parcerias de “verificação de fatos” orientadas politicamente e com legislações que confundem crítica legítima com antissemitismo. O que se chama hoje de “compliance” é, muitas vezes, a institucionalização da censura sob o selo da moralidade corporativa.
Essa engenharia do silêncio não serve apenas a Israel, mas a todos os regimes e corporações interessados em controlar a opinião pública. A guerra contra o povo palestino tornou-se o laboratório perfeito para o novo paradigma do poder informacional: o poder de decidir o que pode ou não ser dito sobre o sofrimento humano. O genocídio, nesse modelo, não termina com a morte — ele continua na ausência de palavras para nomeá-la.
Da bala ao algoritmo: a mutação da guerra

As guerras modernas já não precisam de ocupação física para subjugar um povo. A dominação agora se codifica em linhas de código, interfaces e sistemas de vigilância. Israel, que há décadas investe em tecnologias de controle social sob o pretexto da “segurança nacional”, transformou o campo da guerra num laboratório de engenharia informacional. O que antes era balística e geopolítica, tornou-se engenharia de dados. O exército israelense entendeu que o domínio militar do século XXI depende tanto de tanques quanto de fluxos de informação, e que o poder sobre a narrativa é uma arma tão letal quanto o míssil guiado.
Desde a década de 2010, com o fortalecimento do complexo industrial de cibersegurança israelense — formado por egressos da Unidade 8200 e empresas como NSO Group, Cellebrite, AnyVision e Candiru — o país passou a exportar não apenas armas, mas metodologias de controle. Essas companhias, muitas vezes incubadas em estruturas militares, são as arquitetas de um modelo de guerra total, em que a informação é tanto alvo quanto projétil. O mesmo know-how usado para rastrear palestinos em Gaza alimenta softwares de vigilância vendidos a regimes autoritários, empresas de tecnologia e governos ocidentais. Israel não é apenas uma potência militar; é o epicentro da tecnopolítica da dominação.
Essa mutação da guerra — da bala ao algoritmo — redefiniu os campos de batalha. O espaço físico cedeu lugar às redes sociais, às plataformas e às zonas cinzentas da moderação de conteúdo. O inimigo, antes identificado por território ou uniforme, hoje é classificado por palavras-chave, geolocalização e padrões de comportamento digital. A distinção entre segurança e censura, entre proteção e manipulação, dissolveu-se. O mesmo aparato que monitora o inimigo serve para vigiar a população civil, reprimir dissidências e moldar percepções globais sobre o conflito.
No coração desse modelo está a ideia de “prevenção informacional”: o princípio segundo o qual a desinformação deve ser combatida antes que circule. É um conceito que, sob aparência racional, legitima o controle prévio da narrativa. Israel foi pioneiro em operacionalizar essa doutrina, transformando o controle de danos reputacionais em uma política de Estado. A guerra deixa de ser uma resposta ao ataque e passa a ser uma gestão contínua do sentido.
O que o mundo presencia hoje, nas plataformas digitais, é a expansão planetária dessa doutrina. Os algoritmos que decidem o que vemos ou deixamos de ver são herdeiros diretos do sistema de vigilância que sustenta a ocupação. É o mesmo raciocínio militar aplicado à esfera civil: identificar, classificar, neutralizar. A censura não é mais exceção; é infraestrutura. E a guerra, antes travada com armas, agora se prolonga como um regime informacional que molda percepções, emoções e consensos.
O genocídio de Gaza tornou-se o exemplo máximo dessa mutação. O massacre não é apenas físico; é mediático, semântico, perceptivo. Israel bombardeia corpos e simultaneamente controla o enquadramento de suas mortes. Destrói hospitais e, com ajuda de big techs, destrói o significado da palavra “hospital”. Nessa guerra, quem domina o algoritmo domina a verdade — e quem domina a verdade, domina o mundo.
O lawfare da palavra: compliance, lobby e censura disfarçada de legalidade

A guerra contemporânea encontrou no direito um de seus instrumentos mais sofisticados. O que antes se impunha pela força bruta, agora se legitima pelo vocabulário jurídico e corporativo. Israel e seus aliados compreenderam que, no século XXI, a censura precisa parecer ética, regulada, responsável — e nada cumpre melhor esse papel do que o discurso do compliance. Sob a bandeira da “segurança”, da “responsabilidade corporativa” e do “combate ao ódio”, constrói-se uma arquitetura legal que criminaliza a solidariedade e transforma empatia em infração.
Essa engrenagem opera com precisão milimétrica. Grandes plataformas são pressionadas por governos e lobbies pró-Israel a adotar políticas internas que equiparam a crítica ao sionismo ao antissemitismo. O mesmo enquadramento é replicado em órgãos multilaterais, fóruns empresariais e manuais de conduta digital. Quando um usuário denuncia o genocídio de Gaza, ele não está enfrentando apenas uma empresa de tecnologia: está enfrentando um ecossistema jurídico que redefine o sentido do crime. O lawfare, antes voltado contra líderes políticos e movimentos populares, agora se volta contra a própria linguagem.
O caso mais emblemático é o avanço silencioso das chamadas “definições ampliadas de antissemitismo”, promovidas por instituições como a International Holocaust Remembrance Alliance (IHRA) e incorporadas por países europeus e agências de compliance digital. Essa definição, deliberadamente elástica, inclui críticas a políticas israelenses e apoio ao movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) como manifestações antissemitas. O resultado é um ambiente de censura preventiva: antes mesmo que um post viralize, ele é enquadrado como potencialmente “discriminatório”. A legalidade, nesse contexto, deixa de proteger a liberdade e passa a blindar o poder.
As empresas, temendo o estigma de financiar o “ódio”, aderem sem resistência. Meta, X, TikTok e YouTube assinam acordos com agências de monitoramento de discurso — muitas delas ligadas diretamente ao governo israelense ou a organizações sionistas internacionais — para rastrear e suprimir conteúdos críticos. As diretrizes de “segurança de marca” tornam-se instrumentos de coerção. Nenhuma corporação quer ver seu logotipo ao lado de um vídeo de Gaza. A moralidade corporativa substitui a ética pública.
Esse processo é potencializado por um sistema de lobby que mistura diplomacia, indústria e capital. Organizações como a Anti-Defamation League (ADL) e a Cyber Unit israelense atuam como intermediárias entre Estado e plataforma, moldando o que é ou não permitido circular. Israel, ao se colocar como guardião moral da luta contra o ódio, transforma a narrativa em território estratégico. E o Ocidente, cúmplice, aceita a ficção de que a censura é proteção — desde que ela sirva a seus interesses geopolíticos.
O mais perverso é que essa guerra jurídica contra a palavra não se limita à defesa de Israel. Ela estabelece precedentes para qualquer Estado ou empresa controlar o debate público sob o argumento da “responsabilidade”. O lawfare informacional é a face burocrática da guerra híbrida. Ele permite que o silêncio seja produzido legalmente, com carimbo de conformidade, parecer jurídico e selo ESG. É o triunfo da censura por dentro da norma.
O que se vê, portanto, não é apenas o controle de um discurso, mas a fabricação de um consenso. O direito, que deveria proteger a expressão humana, converte-se em campo de batalha. Cada termo, cada hashtag, cada frase pode ser reinterpretada como ameaça. E nessa disputa semântica, a liberdade de dizer morre em silêncio — soterrada sob o peso da legalidade.
O consórcio da narrativa: Big Techs, Israel e o Ocidente

Nenhuma censura sobrevive sozinha. Para que o apagamento seja eficaz, é preciso construir alianças, consolidar infraestruturas e definir padrões globais de controle. É exatamente isso que Israel e seus aliados ocidentais vêm fazendo — articulando um consórcio invisível entre governos, corporações tecnológicas e entidades de “verificação de fatos” que se apresentam como neutras, mas operam dentro de um alinhamento político rigoroso. O objetivo não é apenas moderar conteúdos, mas modular consciências.
As Big Techs são o braço operacional dessa aliança. As plataformas que prometiam conectar o mundo tornaram-se dispositivos de vigilância e filtragem narrativa. O Facebook, o X, o TikTok e o YouTube participam, de forma direta ou indireta, de programas de cooperação com o governo israelense por meio de agências como a Cyber Unit e o Ministry of Diaspora Affairs. Essas instituições atuam como uma polícia digital paralela: rastreiam postagens, elaboram listas de perfis críticos e enviam pedidos “informais” de remoção de conteúdo — quase sempre atendidos de imediato. Nenhuma lei formal obriga as plataformas a obedecer, mas o medo de retaliações, a pressão diplomática e o receio de perder acesso a contratos de segurança as tornam cúmplices dóceis.
Essa relação não é acidental. Israel construiu, nas últimas duas décadas, um capital tecnológico e moral que o posicionou como exportador global de soluções de cibersegurança e “gestão de reputação”. Startups formadas por ex-militares da Unidade 8200 abastecem as mesmas empresas que hoje operam a moderação de conteúdo em escala global. A expertise em vigilância e espionagem, desenvolvida para controlar palestinos, foi reembalada como serviço corporativo. O algoritmo que silencia Gaza é o mesmo que silencia denúncias trabalhistas, protestos ambientais e movimentos anticoloniais no Sul Global.
Washington e Tel Aviv compartilham uma visão comum: o controle da informação como condição de estabilidade política. O Vale do Silício é a retaguarda civil dessa doutrina. Quando o governo dos Estados Unidos pressiona plataformas a “combater a desinformação”, o que realmente está em jogo é a manutenção da hegemonia narrativa. A parceria com Israel oferece o álibi perfeito: em nome da luta contra o ódio, reproduz-se um sistema de censura seletiva.
No interior das empresas, essa aliança se materializa em comitês de “confiança e segurança”, políticas de “brand safety” e programas de “checagem” terceirizados para organizações alinhadas ao campo ocidental. Muitas dessas entidades recebem financiamento de fundações e think tanks ligados a governos ou conglomerados de mídia — os mesmos que têm interesse em manter o monopólio da interpretação dos fatos. O resultado é um ecossistema autorreferente, onde o discurso aceitável é definido por quem detém os cabos de fibra e as chaves dos servidores.
Israel é o laboratório; o Ocidente, o mercado. O modelo de censura testado em Gaza é exportado com selo de inovação ética. Países que antes denunciavam o autoritarismo digital agora o replicam sob a retórica do “combate ao extremismo”. A guerra de Gaza se converteu em um modelo de governança algorítmica: uma arquitetura global que define quem pode falar, o que pode ser visto e quais causas são aceitáveis.
Essa convergência entre poder estatal e corporativo é o núcleo da guerra híbrida do nosso tempo. O monopólio da verdade é construído por algoritmos privados que operam a serviço de interesses públicos não declarados. O genocídio é negado não com armas, mas com filtros. E o silêncio, novamente, é fabricado em série — embalado em linguagem de direitos humanos e entregue como serviço premium de segurança informacional.
As vítimas do apagamento: jornalistas, ativistas e povos silenciados

Todo sistema de censura começa pela justificativa e termina pelo esquecimento. O que está acontecendo nas redes sociais não é apenas um conflito de narrativas — é a anulação sistemática da existência de um povo. Gaza não está apenas sendo bombardeada; está sendo deletada. Cada imagem removida, cada post ocultado, cada perfil suspenso compõe o roteiro de um genocídio informacional que se soma ao físico. O apagamento digital das vozes palestinas é o prolongamento técnico da limpeza étnica.
Jornalistas locais — muitos deles trabalhando com celulares em meio aos escombros — têm seus conteúdos rotulados como “não verificados” ou “inadequados”. Agências independentes são bloqueadas por “violação de padrões comunitários”. Canais de comunicação palestinos são demonetizados ou apagados do mapa digital. O algoritmo não reconhece o sofrimento de um povo como informação; reconhece-o como risco de imagem. Ao mesmo tempo, perfis oficiais israelenses, mesmo quando propagam desinformação, permanecem intocados. O massacre ganha uma moldura de normalidade, enquanto o testemunho é tratado como ruído.
Em 2024 e 2025, relatórios da Human Rights Watch, Amnesty International e da ONU confirmaram que postagens sobre Gaza sofreram taxas de remoção e bloqueio desproporcionais. Hashtags como #FreePalestine, #StopTheGenocide e #CeasefireNow foram ocultadas ou despriorizadas nos algoritmos de busca do Instagram e do TikTok. Em muitos casos, perfis que publicavam fotos de vítimas eram temporariamente banidos. Era o sofrimento sendo moderado por compliance. A verdade, rebaixada a conteúdo sensível.
Esse apagamento não é apenas técnico — é psicológico e político. Quando as vozes palestinas desaparecem das timelines, o mundo perde o vínculo emocional com a realidade. A dor se torna abstrata, estatística, e o genocídio passa a ser percebido como um episódio distante, inevitável, quase natural. É o triunfo da desumanização via algoritmo: uma estética limpa, sem sangue, sem gritos, sem corpo. Um feed higienizado para uma consciência apática.
Os jornalistas palestinos são, nesse processo, duplamente alvos. São mortos nas ruas e silenciados online. O trabalho de testemunhar — que deveria ser protegido como essência da verdade — é tratado como infração contratual. Já os ativistas do mundo inteiro, especialmente árabes, latinos e progressistas, enfrentam o mesmo destino: bloqueios, shadow bans, perda de alcance e ameaças judiciais. A máquina global de censura não tem fronteiras. Ela pune quem ousa nomear o inominável.
Mas há algo ainda mais profundo: o apagamento simbólico da memória. Quando o registro da dor é apagado, a história se reescreve. O genocídio não deixa rastros, e a vítima desaparece também da narrativa. O crime perfeito, no século XXI, não é aquele sem testemunhas — é aquele cujas testemunhas foram silenciadas sob as regras de uma plataforma. A censura, travestida de “proteção”, transforma o assassino em gestor de reputação e a vítima em violadora de diretrizes.
É por isso que a luta contra a censura digital é, no fundo, uma luta pela humanidade. Manter viva a voz palestina é mais do que um ato de solidariedade: é um ato de resistência civilizacional. É recusar a normalização da barbárie e afirmar que nenhuma política de conformidade pode legitimar o desaparecimento de um povo. Porque quando a dor é proibida de falar, a verdade deixa de existir — e a história, mais uma vez, é escrita pelos que bombardeiam.
A engenharia do consenso: quando a censura vira modelo de governança

O que começou como um mecanismo emergencial de “combate ao ódio” transformou-se num modelo estrutural de governança informacional. A censura digital, antes justificada pela excepcionalidade da guerra, hoje é parte do funcionamento ordinário das plataformas e dos Estados. O laboratório israelense de controle narrativo em Gaza tornou-se um protótipo exportável: um modelo de administração do discurso humano por meio de algoritmos, protocolos jurídicos e pactos de obediência corporativa.
Essa nova engenharia do consenso não depende mais da coerção explícita. Ela opera pela gestão preventiva da visibilidade. O cidadão comum não precisa ser censurado; basta ser invisibilizado. A opinião dissidente não é mais criminalizada de imediato — é simplesmente rebaixada no feed, ocultada nos resultados de busca, classificada como “conteúdo sensível” ou “de baixo engajamento”. A censura, nesse formato, é sofisticada, silenciosa, automatizada e permanente. O que se produz é um consenso administrado, onde a diversidade de pensamento existe apenas enquanto não ameaça o núcleo do poder.
Israel foi pioneiro em institucionalizar essa lógica. A integração entre Estado, startups de segurança e Big Techs criou um modelo híbrido de controle, em que cada empresa é ao mesmo tempo parceira e subcontratada de uma agenda política. Esse arranjo extrapolou as fronteiras do Oriente Médio e contaminou as estruturas ocidentais de governança digital. Hoje, os mesmos protocolos de moderação usados para silenciar denúncias de Gaza são aplicados em campanhas trabalhistas, ambientais e anti-imperialistas em toda parte. A máquina de compliance global aprendeu que neutralizar o dissenso é lucrativo.
Governos, empresas e agências multilaterais passaram a adotar a doutrina da “resiliência informacional”, um eufemismo para controle de fluxos discursivos. Trata-se de um mecanismo de defesa do status quo. O discurso do “combate à desinformação” — legítimo em seu princípio — foi capturado por quem controla a infraestrutura da verdade. A consequência é devastadora: a fronteira entre o que é verdade e o que é permitido dizer se dissolveu. A governança digital tornou-se um campo de disputa semântica, em que “segurança” significa obediência e “transparência” significa vigilância.
O perigo é que essa estrutura de censura se converta em norma global. O modelo israelense é funcional ao sistema capitalista de plataforma, porque produz estabilidade cognitiva — um estado de docilidade informacional. As massas permanecem conectadas, entretidas, produtivas e alienadas, enquanto a infraestrutura da percepção é controlada por poucos. Essa é a essência da nova forma de dominação: não impedir o povo de falar, mas garantir que ninguém o escute.
A engenharia do consenso é a etapa mais avançada da guerra informacional. Não se trata mais de impor uma narrativa única, mas de criar a ilusão de pluralidade sob controle total. Cada cidadão acredita ser livre enquanto reproduz espontaneamente os limites do discurso aceitável. É o triunfo da autocensura, a vitória final do poder sobre a linguagem.
Israel, ao testar e aperfeiçoar esse modelo sob a justificativa da “segurança”, ofereceu ao mundo um manual de governança compatível com a era da economia de dados. O que era exceção humanitária tornou-se padrão global de moderação. O genocídio de um povo serviu de matriz para o controle do pensamento planetário. E o mais perverso é que, nesse sistema, ninguém se vê como censor — todos acreditam estar apenas “cumprindo diretrizes”.
O futuro da verdade sob ocupação

A história sempre foi escrita pelos vencedores, mas o século XXI inaugurou algo ainda mais sombrio: agora, ela é escrita por quem controla os servidores. A verdade tornou-se um território ocupado, administrado por algoritmos e protegida por muros de compliance. O que o mundo presencia em Gaza não é apenas um genocídio físico — é o ensaio geral de um novo regime informacional global. A destruição de corpos e a destruição da palavra caminham lado a lado, como duas faces da mesma política de extermínio.
Sob o disfarce da moderação, o Ocidente está sendo reeducado a não sentir. Israel ensinou ao mundo que é possível bombardear um povo inteiro e, simultaneamente, moldar o discurso público de forma a transformar o horror em normalidade. Cada imagem removida é uma bala disparada contra a memória. Cada post apagado é um corpo soterrado sob a burocracia do silêncio. E cada justificativa corporativa — “violação de diretrizes”, “conteúdo sensível”, “discurso de ódio” — é a versão digital das sirenes que encobrem o som das bombas.
Mas toda ocupação carrega o risco de sua própria ruína. A verdade, mesmo ferida, encontra brechas. As vozes palestinas que resistem, os jornalistas que continuam transmitindo sem rede elétrica, os ativistas que recriam canais de comunicação nas margens do sistema — todos eles compõem a insurreição do real contra o apagamento. A cada vídeo transmitido, a cada relato traduzido, a cada hashtag ressuscitada, o império do silêncio se fende. O poder não consegue apagar aquilo que insiste em existir.
O futuro da verdade dependerá da coragem coletiva de enfrentá-la como campo de disputa. A informação é hoje o território mais estratégico da humanidade — e Gaza é seu ponto zero. Defender a liberdade de narrar não é uma questão de opinião; é uma questão de sobrevivência civilizacional. Porque se aceitarmos que o genocídio possa ser reescrito como “operação legítima”, se permitirmos que a dor seja filtrada por algoritmos de conveniência, então não haverá mais diferença entre fato e ficção, entre justiça e propaganda, entre humanidade e simulacro.
O desafio do nosso tempo é não permitir que o silêncio vença. O verdadeiro campo de batalha não está apenas nas ruas de Gaza, mas nas telas de todo o planeta — nas timelines, nos servidores, nos códigos que decidem o que o mundo pode ou não ver. Resistir à censura é resistir à morte simbólica da verdade. É afirmar que, enquanto houver alguém disposto a nomear o que acontece, a ocupação jamais será total.
A guerra contra a Palestina é o espelho onde o mundo vê seu próprio futuro. Um futuro onde o poder sonha com uma humanidade dócil, desinformada e incapaz de sentir. Mas esse futuro ainda não está escrito. Ele será decidido por quem ousar dizer, documentar e lembrar — mesmo quando a verdade for tratada como crime.
Porque a história, por mais que tentem apagá-la, sempre encontra quem a conte.
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