Qual é a tua, jornalismo?
- Sara Goes
- 22 de jul.
- 5 min de leitura

Talvez pareça atrevido da minha parte, mas há momentos em que até os jornalistas premiados precisam ser lembrados do básico, que jornalismo não é camaradagem com golpista
Às vezes, só alguém de fora dos círculos e dos convescotes jornalísticos é capaz de dizer o óbvio com a clareza que os medalhões preferem fingir que não enxergam. Porque quem está dentro demais já se acostumou a pisar em ovos, a medir palavra, a proteger relações e preservar reputações. Eu não. Não tenho cargo, prêmio ou patrocínio para perder. Por isso posso fazer o que muitos não fazem, mesmo tendo currículo para tanto: apontar o dedo na cara de quem trocou a coragem pela carreira. Lá vai:
Jair Bolsonaro não será preso por crime de opinião, nem por divergência política, nem por um mal-entendido jurídico. Ele será preso por tentar destruir a democracia brasileira a partir do topo do Estado. O relatório final da Polícia Federal, entregue ao Supremo Tribunal Federal no segundo semestre de 2024, é contundente no detalhamento da trama golpista. Aponta o ex-presidente como autor intelectual de uma operação que envolveu sabotagem institucional, fabricação de mentiras sobre o sistema eleitoral, mobilização de agentes militares e articulação com redes empresariais e digitais para instaurar um estado de exceção. A minuta de golpe encontrada na casa de Anderson Torres não era rascunho, era plano. E seu conteúdo, prisão de ministros do STF, cancelamento das eleições, intervenção nas comunicações, foi elaborado com participação direta do núcleo duro bolsonarista, inclusive assessores palacianos e oficiais das Forças Armadas. O relatório é taxativo ao afirmar que Bolsonaro sabia da legalidade do pleito, mas optou por romper com a ordem democrática.
A tentativa de golpe foi tanto analógica quanto digital. E é justamente nesse ponto que a atuação do ministro Alexandre de Moraes adquire dimensão histórica. Desde 2020, Moraes lidera uma frente institucional que enfrenta a máquina de desinformação operada por plataformas digitais transnacionais com interesses empresariais incompatíveis com a democracia. É dele a relatoria do Inquérito das Fake News, é dele a decisão que obrigou Telegram, Google e Meta a obedecerem às leis brasileiras, é dele o voto que afirmou que liberdade de expressão não inclui discurso de ódio ou sabotagem institucional. É também dele a ordem de bloqueio contra perfis, contas e redes golpistas antes do 8 de janeiro. Não há exagero em afirmar, Moraes personifica a única reação de Estado que impôs limites ao poder de redes que se comportam como soberanias paralelas.
É importante, de tempos em tempos, refrescar a memória de quem, de tanto dar voz aos que relativizam ou ridicularizam a intentona golpista, parece ter esquecido o que de fato foi planejado contra esse país. Porque entre uma manchete neutra e uma entrevista cordial com os articuladores do caos, a imprensa foi apagando os contornos do crime em nome de uma tal “pluralidade” que, no fim, só serve para blindar golpista com crachá de analista. Pois sigamos, já que esquecer não é opção.
A reação veio. Em julho de 2025, Donald Trump anunciou um tarifaço de 50% contra produtos brasileiros. A justificativa oficial, desequilíbrio comercial, é absurda. O verdadeiro motivo está nos documentos, Trump exigia a suspensão dos processos contra Bolsonaro e o fim das medidas judiciais contra plataformas americanas. Na prática, uma chantagem. E quem entregou o roteiro a Trump foi o trio Eduardo Bolsonaro, Paulo Figueiredo e a equipe de lobby organizada em Washington. Eduardo recebeu dois milhões de reais do pai, parte em espécie, para atuar nos Estados Unidos como articulador informal do golpe, pressionando think tanks, congressistas e empresas de tecnologia. Foi ele quem defendeu a aplicação da Lei Magnitsky contra Moraes e quem participou, ao lado de Figueiredo, de reuniões com representantes de Trump Media e da Rumble para tentar transformar a repressão judicial brasileira em ativo político na campanha republicana.
O mais estarrecedor é que os porta-vozes do golpe não se escondem. Falam abertamente sobre prejudicar a economia nacional, cortar exportações, sufocar cadeias produtivas inteiras, tudo em nome de uma revanche pessoal contra o STF. A destruição deliberada do país virou projeto político. E diante disso, a imprensa brasileira ultrapassou todos os limites da subserviência. Se antes se humilhava ao papel de porta-voz do “mercado”, reproduzindo boletins de mal-estar em nome de rentistas invisíveis, agora se curva para militantes golpistas e ainda os trata como analistas. Substituiu o cuidado com a democracia pelo zelo com os desconfortos de farda e as angústias de especuladores de podcast. Relatórios sobre instabilidade institucional são escritos com a mesma delicadeza com que eu examino os dodóis do meu filho de um ano, com atenção, empatia e gaze esterilizada. Só que, no caso da imprensa, a criança birrenta atende por Bolsonaro, e o dodói é o risco de ter que responder por crimes reais.
Paulo Figueiredo, por sua vez, atua em múltiplas frentes do golpismo. Foi ele quem leu, em rede nacional, uma carta registrada que escancarava a tentativa de golpe, insuflando militares e seguidores bolsonaristas com retórica conspiratória. Nas redes, instigou a ruptura institucional com a mesma naturalidade com que agora articula com o trumpismo no Congresso dos Estados Unidos. Chegou ao ponto de propagar a tese delirante de que Alexandre de Moraes seria o verdadeiro articulador de um golpe por ter, segundo ele, influenciado a nomeação do chefe das Forças Armadas. E mesmo com esse histórico, é tratado como comentarista político por veículos que deveriam defender a democracia. A imprensa brasileira, ao oferecer-lhe microfone, não apenas normaliza, mas legitima a sabotagem.
É neste ponto que a linha do tempo se revela. O tarifaço de Trump é um ataque à Justiça brasileira. Não à democracia abstrata, mas à autoridade concreta de um Judiciário que ousou contrariar o poder das plataformas. O que está em jogo não é apenas a liberdade de Lula governar, mas a liberdade de um país legislar, julgar e se defender de agressões externas. E é aí que Bolsonaro, Eduardo e Figueiredo deixam de ser personagens internos da política brasileira para se tornarem agentes da sabotagem externa. Articulam sanções contra o Brasil para tentar paralisar o Judiciário e salvar seu projeto autoritário. Tentam transformar Trump em corregedor do STF. E encontram eco, vergonhosamente, em setores da imprensa brasileira.
Porque enquanto Alexandre de Moraes é demonizado, e enquanto Jair Bolsonaro transforma cada medida cautelar em espetáculo de mártir digital, do choro em rede nacional à tornozeleira exibida como símbolo de perseguição, há veículos e jornalistas que tratam Eduardo Bolsonaro como analista internacional e Paulo Figueiredo como comentarista conservador. São convidados para podcasts, colunas e entrevistas em programas que se dizem progressistas. Recebem espaço para acusar o STF de censura, o governo de autoritarismo e os inquéritos de abuso, enquanto articulam, fora do país, sua destruição. Isso não é pluralismo, é rendição.
A Procuradoria-Geral da República já apresentou denúncia robusta, com base em provas materiais e depoimentos, contra Bolsonaro e aliados. O ex-presidente já descumpriu as medidas impostas pelo STF, inclusive as restrições de comunicação digital. Moraes, como determina a Constituição, aguarda a manifestação da defesa antes de decretar sua prisão. Mas o rito é apenas forma, o conteúdo é claro. Bolsonaro será preso não por causa de uma fala, mas por um plano. E o jornalismo que trata isso como conflito narrativo está servindo de biombo para o inimigo.
A discussão sobre soberania não pode se limitar a data centers, Pix, tarifas ou criptografia. A soberania é também jornalística. Não se constrói soberania informacional se a imprensa insiste em oferecer palco a agentes do caos. O mínimo ético que se exige do jornalismo brasileiro, em um momento como este, é que escolha de que lado está. Não contra pessoas, mas contra a manipulação sistemática da democracia como método de governo. Se Eduardo Bolsonaro, Paulo Figueiredo e Jair Bolsonaro ainda circulam com desenvoltura em certos espaços de mídia, é porque ainda há editores, âncoras e produtores que confundem liberdade de expressão com cumplicidade editorial.
A soberania começa pela linguagem. E é hora de chamá-los pelo nome, golpistas, traidores. Não convidados. Não analistas. Não dissidentes. Golpistas. Quem lhes oferece espaço, sem confronto ou contradição, está promovendo desinformação com sotaque democrático. Esse também é um golpe. E o jornalismo precisa decidir se vai narrá-lo ou enfrentá-lo.
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