Soberania traída: a história contada pelos sabotadores
- Sara Goes
- 30 de jul.
- 4 min de leitura
Eduardo Bolsonaro celebra sanções dos EUA contra Moraes, exige anistia a golpistas e revela o que sempre foi: traidor da pátria travestido de patriota. A farsa agora tem nome e rosto

Comecei o dia lendo O Povo e dei de cara com uma reportagem sobre a Batalha de Paranaguá. Aquelas histórias que ficam nas placas turísticas como se fossem orgulho, mas que, vistas de perto, revelam vergonha. Em 1850, o Brasil disparou contra um navio inglês e chamou isso de defesa da soberania. O motivo real: proteger o tráfico ilegal de escravizados. A Inglaterra queria barrar o comércio, e os senhores locais reagiram com bala para manter o lucro. Disfarçaram submissão como coragem, privilégio como independência. Soa familiar?
A matéria narra em detalhes o episódio: O HMS Cormorant, navio da Marinha Real britânica, havia apreendido três embarcações brasileiras suspeitas de transportar africanos escravizados: os bergantins Donna Ana e Sereia, e a galera Campeadora. Uma quarta embarcação, o Astro, foi afundada pelo próprio capitão para não cair em mãos britânicas. Em resposta, os canhões da Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, na Ilha do Mel, abriram fogo contra o cruzador inglês. A cena virou mito nacional, ainda hoje registrada em placas comemorativas como um gesto de bravura. Mas a historiografia contemporânea já desfez o engano: aquela reação não visava defender o país, e sim preservar uma rota clandestina de tráfico humano.
Paranaguá, porto estratégico para o comércio ilegal, tornou-se entreposto do tráfico, com os escravizados embarcados para São Paulo. Dois meses depois, o Império promulgou a Lei Eusébio de Queirós para finalmente combater o tráfico negreiro. Mesmo assim, o mito da coragem prevaleceu, até que alguém lesse entrelinhas.
Esse mesmo tipo de distorção reaparece agora, 175 anos depois, na campanha conduzida pelo Partido Liberal. Após o tarifaço imposto por Donald Trump ao Brasil, o PL reagiu com peças publicitárias que tentam colar Bolsonaro à imagem de um líder popular e soberano. Em um dos vídeos, o ex‑presidente aparece cumprimentando uma multidão enquanto os dizeres “soberano é o povo” brilham na tela. A produção replica diretamente a campanha “Brasil com S de Soberania”, lançada pelo PT logo após o anúncio das tarifas de 50%, que atingem carne bovina, café, suco de laranja e a indústria aeronáutica.
A ironia é brutal. Enquanto Eduardo Bolsonaro age em solo estadunidense para pedir sanções contra seu próprio país e impedir que senadores brasileiros encontrem diálogo com autoridades estrangeiras, seu partido disputa o léxico da soberania nas redes sociais. Onde se lia “Defenda o Brasil”, eles colaram “Defenda o Brasil do PT”. A estratégia não é apenas vazia. É desesperada.


Segundo dados da Biblioteca de Anúncios da Meta, mencionados em reportagem de Fellipe Gualberto no Estadão, o PT investiu pelo menos R$ 34 mil para impulsionar um vídeo de inteligência artificial em que Jair Bolsonaro aparece como um boneco de ventríloquo manipulado por Donald Trump. O impacto foi imediato nas redes, enquanto o PL corria atrás com slogans reciclados e imagens de multidões antigas.
Mas o problema é mais profundo. Como argumenta Reynaldo Aragon, o Brasil enfrenta hoje uma guerra informacional híbrida, que combina ataques econômicos, narrativos e tecnológicos para enfraquecer a soberania nacional e inviabilizar projetos democráticos até 2026. O tarifaço de Trump não é apenas retaliação individual contra Bolsonaro. É uma retaliação contra um país que ousa reorganizar sua geopolítica, integrar-se ao BRICS e confrontar o poder das big techs.
Aragon alerta ainda que sem soberania informacional não há democracia possível. Mesmo com discurso palatável, o governo segue cedendo às plataformas, terceiriza dados e opera em nuvens coloniais. É nesse contexto que a disputa simbólica sobre o termo “soberania” se torna ainda mais relevante, porque não se trata apenas de linguagem, mas de comando.
Nesse ambiente, ganha força a figura que Lula reabilitou em discurso recente: a do traidor da pátria. Ao rememorar o episódio de Tiradentes e Silvério dos Reis, o presidente desenha uma linha histórica entre a denúncia do passado e a traição contemporânea. “Tiradentes foi traído por Silvério dos Reis”, disse Lula, para logo depois identificar os de hoje: os que se diziam patriotas e hoje estão de joelhos diante do presidente dos Estados Unidos, pedindo intervenção no Brasil. A figura do traidor deixa de ser uma abstração histórica e ganha rosto. São aqueles que abandonaram o mandato, pedem sanções contra o país e defendem a subordinação nacional. “É pior que Silvério dos Reis. Porque Silvério traiu um homem. Esses estão traindo a nação.”
Ao fazer isso, Lula constrói um imaginário de combate em que a soberania não é apenas um valor positivo, mas também um critério de julgamento político e moral. A soberania exige lealdade. E a traição, hoje, não é mais uma metáfora, é uma categoria política ativa. A narrativa do traidor volta à cena para nomear, sem eufemismo, o que está em jogo: ou se está com o Brasil ou se está a serviço de sua sabotagem.
Tal como os canhões da Fortaleza de Paranaguá protegiam o tráfico negreiro sob o manto da honra nacional, a campanha bolsonarista de hoje finge defender o povo enquanto sabota o país. Quem celebra um tarifaço imposto por um aliado ideológico, quem recusa diálogo democrático e quem atua para prolongar crises institucionais não defende soberania, defende os próprios interesses. A soberania que reivindicam é a mesma do século XIX, o direito de manter privilégios à força com aparência de bravura.
Mas o tempo gira. Se a mentira da Batalha de Paranaguá acabou desfeita pela história, a farsa da soberania bolsonarista já começa a ruir diante da transparência digital. A guerra informacional só será vencida com estratégia, projeto, pedagogia popular e coragem política, como defende Aragon. É preciso rebater narrativas, regulamentar plataformas, reocupar os sentidos e formar uma pedagogia da soberania que parta do povo.
Porque às vezes é só lendo um jornal local cedo que a gente entende que o presente é continuação mal disfarçada do passado. E que, para mudar o enredo, é preciso nomear os traidores antes que eles se apropriem das palavras que nunca lhes pertenceram.




Comentários