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Qual é o papel de Israel na crise entre Brasil e Estados Unidos

  • Foto do escritor: Rey Aragon
    Rey Aragon
  • há 16 horas
  • 21 min de leitura

A atuação de Israel sob Netanyahu e suas redes no Brasil revela um eixo oculto de influência que ressoa na ofensiva dos Estados Unidos contra o governo Lula.


Em meio à escalada entre Brasília e Washington, este especial investiga como Israel, suas redes políticas, tecnológicas e culturais no Brasil e a disputa em torno de Gaza se entrelaçam para moldar narrativas, influenciar decisões e pressionar a soberania brasileira.

A pergunta que atravessa três capitais



Qual é o papel de Israel na crise atual entre Brasil e Estados Unidos? Essa não é apenas uma indagação diplomática: é uma questão de soberania, tecnologia, poder simbólico e disputa por narrativas no século XXI. Desde que a guerra em Gaza reabriu fraturas na política global e colocou governos à prova sobre o significado de “direitos humanos” e “terrorismo”, o Brasil, sob Luiz Inácio Lula da Silva, e Israel, sob Benjamin Netanyahu, encontraram-se em campos opostos — um choque que rapidamente se projetou para além do Oriente Médio. Em Brasília, esse embate se materializou em gestos inéditos: a classificação oficial das ações israelenses em Gaza como genocídio; a entrada do Brasil no caso contra Israel na Corte Internacional de Justiça; a retirada do embaixador brasileiro de Tel Aviv; e a resposta israelense declarando Lula “persona non grata”. Em Tel Aviv, o governo Netanyahu tratou o Brasil como um dissidente a ser enquadrado. Nos Estados Unidos, redes políticas e discursivas que cruzam o trumpismo, o sionismo cristão e o lobby pró-Israel encontraram na crise um ponto de ressonância com suas próprias agendas — e parte dessa ressonância se converteu em sanções, tarifaços e pressão institucional contra Brasília.


O que este artigo propõe é uma investigação estratégica, de alto nível, sobre como Israel — enquanto Estado, sob Netanyahu — e as redes pró-Israel, nacionais e transnacionais, interagem com a crise Brasil–EUA. Não se trata de especulação conspiratória ou narrativa genérica: o foco está em atos de Estado, declarações oficiais, contratos e eventos verificáveis, com separação rigorosa entre fato e inferência. Cada afirmação será sustentada por documentos públicos, registros oficiais e fontes de alta confiabilidade, com todas as inferências claramente identificadas e apoiadas por mais de um vetor de evidência. A abordagem evita imputações criminais sem base judicial e não generaliza sobre identidades religiosas, mantendo o recorte estritamente político, institucional e geopolítico.


Essa análise é necessária porque a crise Brasil–EUA não é um episódio isolado. Ela ocorre em um cenário de recomposição do sistema internacional, disputa pelo controle das infraestruturas informacionais e reconfiguração das alianças estratégicas. Israel, sob Netanyahu, tornou-se não apenas um ator central no Oriente Médio, mas também um vetor de influência nas democracias pelo mundo, especialmente através de tecnologia de defesa, diplomacia normativa e redes político-religiosas. No Brasil, essas presenças e alianças têm história, escala e consequências diretas para a soberania nacional. O que está em jogo não é apenas a relação bilateral Brasil–Israel, mas como ela se inscreve no triângulo de poder que envolve Washington, Tel Aviv e Brasília, e como esse triângulo é ativado — voluntária ou involuntariamente — para pressionar um governo que decidiu trilhar um caminho mais autônomo no tabuleiro global.

Linha do tempo 2019–12/08/2025



O ponto de inflexão da relação Brasil–Israel no cenário contemporâneo começa em 2019, quando Jair Bolsonaro assume a Presidência alinhado ao governo Benjamin Netanyahu e ao ecossistema conservador global. Nesse período, a pauta pró-Israel deixa de ser apenas um elemento da diplomacia para se tornar um eixo de identidade política do bolsonarismo, consolidado pelo discurso público de mudança da embaixada brasileira para Jerusalém, pela assinatura de acordos de cooperação em defesa e segurança e pela aproximação com redes evangélicas de matriz sionista. Essa convergência simbólica e material serviu de ponte entre Brasília, Tel Aviv e Washington, em plena sintonia com a Casa Branca de Donald Trump.


Entre 2020 e 2022, essa parceria se traduz em expansão de contratos de defesa — com destaque para a atuação da AEL Sistemas (subsidiária da Elbit Systems) e da Ares Aeroespacial — e na incorporação de tecnologias israelenses de vigilância e perícia forense por órgãos brasileiros. Ferramentas como o sistema FirstMile, da Cognyte, foram adquiridas no governo Bolsonaro e posteriormente usadas, segundo investigações da Polícia Federal, para monitoramento ilegal de jornalistas, magistrados e opositores políticos, incluindo o ministro Alexandre de Moraes. Esse vetor tecnológico cria uma conexão tangível entre a presença israelense no aparato estatal brasileiro e o centro da crise institucional que, mais tarde, colocaria Brasília em rota de colisão com Washington.


A inflexão diplomática ocorre em outubro de 2023, quando Lula, já de volta à Presidência, condena de forma contundente as ações militares israelenses em Gaza, qualificando-as como genocídio. A declaração rompe com o padrão de cautela histórica do Itamaraty e provoca reação imediata de Israel, com a convocação do embaixador brasileiro para explicações e declarações públicas do Ministério das Relações Exteriores israelense classificando a fala como “vergonhosa”. Em fevereiro de 2024, em um ato raro na diplomacia bilateral, Israel declara Lula “persona non grata”, e o Brasil retira seu embaixador de Tel Aviv.


Nos meses seguintes, a relação se mantém em estado de atrito permanente. A Frente Parlamentar Brasil–Israel e entidades como a Confederação Israelita do Brasil (CONIB) e a Federação Israelita do Estado de São Paulo (FISESP) intensificam a reação pública contra o governo, emitindo notas e participando de eventos que denunciam o uso do termo genocídio e acusam o Planalto de omitir ou relativizar as ações do Hamas. O campo evangélico, especialmente ligado ao sionismo cristão, amplia a pressão simbólica, transformando a defesa de Israel em bandeira central em eventos de massa, como a Marcha para Jesus.


O ponto de escalada máxima vem em julho de 2025, quando o Brasil anuncia oficialmente sua entrada no caso movido pela África do Sul contra Israel na Corte Internacional de Justiça, acusando Tel Aviv de genocídio contra o povo palestino. A decisão é recebida em Israel com hostilidade aberta e, no Brasil, com imediata mobilização do campo pró-Israel, que a apresenta como uma ruptura “histórica e lamentável” das relações bilaterais. O ato acende sinais de alerta também em Washington, onde as redes pró-Israel já estavam interligadas ao lobby bolsonarista e ao campo trumpista.


Menos de três semanas depois, os Estados Unidos sob Donald Trump iniciam uma ofensiva sem precedentes contra Brasília: sanções via Lei Magnitsky contra Alexandre de Moraes, revogação de vistos de magistrados e autoridades brasileiras e imposição de uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros. Embora formalmente justificados por “abusos de direitos humanos” e “censura judicial”, esses atos ressoam com a mesma gramática política usada por entidades e autoridades pró-Israel para atacar a posição brasileira em relação a Gaza e ao caso no Tribunal de Haia. O efeito é o de uma sincronia discursiva que amplia a pressão sobre o governo Lula por dois flancos simultâneos — o diplomático-midiático e o econômico-institucional.


No dia 12 de agosto de 2025, o cenário encontra-se cristalizado: Israel mantém a postura de isolamento diplomático em relação ao Brasil; as entidades pró-Israel e o campo evangélico sustentam pressão simbólica e política interna; e Washington aplica medidas coercitivas que, ainda que motivadas pelo embate sobre o caso Bolsonaro, se alimentam da mesma narrativa normativa. A ponte entre esses vetores não é um comando direto, mas uma ressonância de agendas, com Israel sob Netanyahu atuando como nó de influência em democracias ao redor do mundo e no Brasil, e como referência moral e política para parte do ecossistema de poder que hoje sustenta a ofensiva americana.

Israel e as democracias: como se projeta poder



Ao longo das últimas duas décadas, Israel consolidou um modelo de projeção de poder nas democracias que combina três vetores principais: a diplomacia normativa, a exportação de tecnologia dual use (de aplicação civil e militar) e a articulação com redes políticas e comunitárias no exterior. É um modelo que opera em democracias consolidadas e emergentes, sustentando interesses estratégicos do Estado israelense e, ao mesmo tempo, protegendo o governo de turno — no caso atual, o de Benjamin Netanyahu — de pressões internas e externas.


No campo da diplomacia normativa, Israel atua como produtor e exportador de enquadramentos políticos, jurídicos e semânticos que moldam debates internacionais. A definição de quem é ou não “terrorista”, o uso do termo “antissemitismo” para enquadrar críticas e a reinterpretação de conceitos de “direitos humanos” e “legítima defesa” são exemplos de ferramentas discursivas testadas em seu próprio território e depois levadas a fóruns multilaterais e a governos aliados. Essa exportação semântica cria terreno fértil para que aliados políticos — mesmo fora do Oriente Médio — usem a mesma gramática para deslegitimar adversários e justificar políticas domésticas controversas.


No vetor tecnológico, Israel se apresenta como uma potência em segurança, defesa e inteligência cibernética. Empresas israelenses, muitas delas fundadas ou dirigidas por ex-integrantes das Forças de Defesa de Israel ou da Unidade 8200 de inteligência militar, desenvolveram produtos que hoje equipam desde polícias locais até agências de inteligência em dezenas de países. A natureza dual dessas tecnologias — que podem servir tanto à proteção contra crimes e ameaças reais quanto à vigilância política e ao controle social — cria um campo de dependência estratégica para quem as adota. Essa interdependência é cuidadosamente cultivada, por meio de contratos de longo prazo, transferência de know-how e instalação de bases industriais no país comprador.


O terceiro vetor, de articulação política e comunitária, é o mais capilar e menos visível. Israel mantém diálogo constante com entidades judaicas e pró-Israel no exterior, além de aproveitar a força simbólica do sionismo cristão em países com grandes populações evangélicas, como o Brasil e os Estados Unidos. Essa rede se estende a frentes parlamentares, think tanks, grupos de lobby, eventos de massa e plataformas digitais. A coordenação formal nem sempre é visível, mas a convergência de agendas e a troca de recursos — sejam eles simbólicos, técnicos ou financeiros — permitem que narrativas favoráveis a Israel circulem e se fixem com rapidez nos circuitos políticos e midiáticos locais.


Esse padrão global de atuação já foi visível em outros contextos. No Reino Unido, durante as tensões do Partido Trabalhista sob Jeremy Corbyn, acusações de antissemitismo contra o então líder foram amplamente amplificadas por entidades pró-Israel e replicadas na imprensa, enfraquecendo sua posição política. Nos Estados Unidos, a simbiose entre o governo Trump e Netanyahu foi clara, com decisões de peso, como o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, funcionando como moeda política para agradar simultaneamente o eleitorado evangélico e as redes pró-Israel. Na América Latina, países como Honduras e Guatemala seguiram a mesma linha, recebendo apoio político e cooperação técnica em troca de gestos diplomáticos pró-Israel.


No caso brasileiro, esse modelo não só foi replicado, como ganhou camadas adicionais. A presença robusta de tecnologia israelense nos setores de defesa e vigilância, o engajamento direto com frentes parlamentares e organizações evangélicas e o uso da diplomacia normativa para enquadrar a posição brasileira sobre Gaza como “antissemitismo” ou “apoio ao terrorismo” mostram que o Brasil está inserido em um laboratório avançado dessa forma de atuação. Isso não significa, por si só, que haja uma cadeia de comando linear de Tel Aviv para Brasília ou Washington, mas que existe um alinhamento estrutural e funcional que conecta interesses e narrativas, com efeitos concretos na política externa, na economia e na opinião pública brasileira.

O ecossistema pró-Israel no Brasil



No plano diplomático-institucional, a fricção bilateral acendeu quando o governo brasileiro passou a nomear Gaza como genocídio e, em 23 de julho de 2025, decidiu aderir ao processo na Corte Internacional de Justiça. A decisão foi tornada pública pelo Itamaraty e repercutida por veículos nacionais e estrangeiros; o governo israelense respondeu com críticas duras, classificando a adesão brasileira como falha moral, enquanto a Confederação Israelita do Brasil e a Federação Israelita do Estado de São Paulo intensificaram notas e manifestações públicas contra o uso do termo genocídio por Lula. Esse conjunto de atos e reações deslocou a relação do terreno técnico para o simbólico, oferecendo um enquadramento permanente para pressionar Brasília em nome de “direitos humanos” e “combate ao terrorismo”.


No plano socio-religioso, o sionismo cristão opera como ponte de massa entre política, fé e geopolítica. A Marcha para Jesus de 19 de junho de 2025, em São Paulo, exibiu profusão de bandeiras de Israel, oração “em socorro a Israel” e presença de autoridades. Esse repertório simbólico capilariza a defesa de Israel no espaço público e reintroduz, em linguagem devocional, a gramática que disputa o sentido de direitos humanos e antissemitismo, com reverberação imediata no sistema político e na imprensa.


O vetor tecno-securitário é onde a influência ganha densidade material. Na defesa, a presença industrial israelense consolidou-se há anos por meio da AEL Sistemas e da Ares Aeroespacial, ligadas ao grupo Elbit, com participação em programas do Exército como o Guarani e suas torres UT-30BR e REMAX. Trata-se de cadeias de longo prazo, com pesquisa e desenvolvimento local e contratos plurianuais, que criam dependências técnicas e políticas acima do seu peso comercial absoluto. No campo da vigilância e forense digital, investigações e documentos oficiais registram o uso do sistema FirstMile, da israelense Cognyte, no escândalo da “ABIN paralela”, com acessos ilegais que atingiram jornalistas, opositores e autoridades. O relatório final da Polícia Federal e reportagens detalham o modus operandi e os alvos, conectando tecnologia israelense a um caso sensível do Estado brasileiro. Em paralelo, há contratos públicos de assinatura e renovação de suítes da Cellebrite para extração e análise de dados móveis em órgãos federais e estaduais, o que reforça a posição de fornecedores israelenses como infraestrutura crítica de investigação no país. Esse arranjo tecno-material, embora legítimo quando regulado, torna-se politicamente radioativo quando associado a abusos, pois atravessa a fronteira entre segurança pública e soberania informacional.


No vetor midiático-discursivo, organizações pró-Israel atuaram de modo recorrente para contestar o enquadramento brasileiro de Gaza como genocídio, com postagens, notas e entrevistas que acusam distorção dos fatos, ignorância quanto aos atos do Hamas e risco de incentivar antissemitismo. Esse fluxo de comunicação não é marginal: ele cria o ambiente simbólico em que decisões de Estado brasileiras passam a ser julgadas por uma régua moral alternativa e em que críticas ao governo Netanyahu são recombinadas como “hostilidade a Israel”. O efeito é ampliar a temperatura da esfera pública e oferecer um arcabouço argumentativo pronto para atores políticos alinhados a Washington e à direita transnacional.


Em síntese, quatro camadas se entrecruzam e se reforçam no Brasil: o canal diplomático-institucional, que migrou do pragmatismo à disputa normativa desde a adesão à CIJ; a base socio-religiosa evangélica, que fornece massa crítica e estética pública pró-Israel; a infraestrutura tecno-securitária, que ancora relações em contratos, fábricas e softwares sensíveis; e a camada midiático-discursiva, que disputa a semântica de genocídio, direitos humanos e antissemitismo. Essa arquitetura não prova comando direto de Tel Aviv sobre Brasília ou Washington, mas estabelece um nó de influência suficiente para modular custos políticos e administrativos do governo brasileiro. É nesse ponto que a ressonância com a crise Brasil–EUA se torna visível: a mesma gramática mobilizada por atores pró-Israel para deslegitimar a posição do Brasil em Gaza reaparece na narrativa americana que justificou medidas coercitivas contra o país, criando um corredor de pressão simbólica e material que parte de eventos locais e se conecta a decisões geopolíticas maiores.

Pretensões e interesses de Israel no Brasil



As pretensões de Israel no Brasil não podem ser entendidas apenas como um conjunto de interesses comerciais ou protocolares. Elas se inserem em uma estratégia de longo prazo que combina objetivos de segurança, projeção diplomática e influência normativa. O Brasil, por seu tamanho econômico, relevância política na América Latina e peso geopolítico como integrante do BRICS, ocupa um lugar especial nessa arquitetura.


No campo da defesa e segurança, Israel busca manter e expandir sua posição como fornecedor estratégico de tecnologia militar e de vigilância para o Brasil. Essa presença vai muito além da venda de equipamentos: envolve transferência de know-how, instalação de linhas de produção no país e contratos de manutenção que garantem vínculos duradouros com as Forças Armadas e órgãos de segurança pública. Programas como o Guarani, equipados com sistemas de armas israelenses, e a difusão de ferramentas forenses como as da Cellebrite e da Cognyte, criam uma interdependência tecnológica que, mesmo em momentos de atrito político, tende a se manter pela dificuldade de substituição rápida desses insumos críticos.


No eixo da diplomacia e influência normativa, Israel tem o objetivo de garantir que governos estrangeiros, especialmente em democracias relevantes, adotem ou ao menos respeitem sua leitura sobre temas centrais como segurança, terrorismo e direitos humanos. No caso brasileiro, isso significa resistir a qualquer enquadramento jurídico ou político que classifique suas ações em Gaza como genocídio e combater narrativas que o associem a violações sistemáticas de direitos. O lobby pró-Israel no Brasil — formado por entidades comunitárias, redes religiosas e parlamentares — atua para que a posição oficial brasileira se alinhe, ou ao menos não confronte frontalmente, a diplomacia israelense.


No plano econômico e tecnológico, Israel vê o Brasil como um mercado estratégico para suas empresas de alta tecnologia, tanto no setor de defesa quanto em áreas civis como agricultura de precisão, dessalinização, segurança cibernética e inovação médica. Esses segmentos, embora apresentados como oportunidades comerciais legítimas, carregam valor geopolítico ao fortalecer a presença israelense em cadeias produtivas sensíveis e consolidar imagem de parceiro indispensável em soluções tecnológicas.


Na dimensão político-ideológica, Israel, sob Netanyahu, reconhece o valor de ter o Brasil como aliado ou, no mínimo, como voz neutra em fóruns multilaterais. Isso vale especialmente em organismos como a ONU, onde o Brasil tem histórico de atuar como mediador em conflitos internacionais. A reação dura à entrada do Brasil no caso da Corte Internacional de Justiça revela que a preservação de capital político em instâncias internacionais é uma prioridade estratégica para Tel Aviv. Nesse sentido, neutralizar ou enfraquecer posicionamentos contrários em países de peso é visto como fundamental para evitar precedentes que possam isolar Israel no plano diplomático.


Essas pretensões encontram no Brasil um terreno fértil e, ao mesmo tempo, um campo de disputa. Por um lado, a presença consolidada no setor de defesa, a articulação com setores evangélicos e o relacionamento histórico com segmentos empresariais garantem acesso e influência. Por outro, o alinhamento atual do governo Lula com o Sul Global, a aproximação com a China e a Rússia e a postura firme em relação à Palestina colocam o Brasil no polo oposto da estratégia internacional de Netanyahu. É justamente essa tensão que explica o interesse em mobilizar, no Brasil, todas as frentes possíveis de influência — diplomática, tecnológica, econômica e cultural — para tentar reverter, suavizar ou ao menos conter o impacto de decisões brasileiras que possam enfraquecer a posição internacional de Israel.


Esse conjunto de interesses e ações, quando visto no contexto da crise Brasil–EUA, revela um elemento chave: a convergência de agendas. Ao disputar a narrativa sobre direitos humanos e terrorismo no Brasil, Israel alimenta uma base de argumentos e alianças que também serve ao discurso americano de pressão contra o governo Lula. Ao mesmo tempo, ao manter posições estratégicas na infraestrutura de segurança e vigilância do Brasil, assegura que sua presença não possa ser facilmente desfeita, criando uma espécie de “garantia estrutural” de influência, mesmo em tempos de divergência política aberta.

A ponte com a crise Brasil–EUA



A crise aberta entre Brasil e Estados Unidos em 2025 não pode ser entendida apenas como um embate bilateral disparado por divergências sobre o caso Bolsonaro ou pelas medidas judiciais contra a extrema-direita brasileira. Ela se insere num contexto mais amplo de rearranjos geopolíticos, onde interesses e narrativas se entrecruzam, criando uma pressão multifacetada sobre Brasília. Nesse tabuleiro, Israel desempenha o papel de nó de influência que conecta agendas normativas, redes políticas e infraestrutura estratégica, fornecendo argumentos e mecanismos que, mesmo não sendo criados especificamente para essa crise, acabam sendo acionados como reforço à ofensiva americana.


O primeiro mecanismo dessa ponte é o semântico-normativo. Desde que Lula classificou como genocídio as ações israelenses em Gaza e aderiu ao processo na Corte Internacional de Justiça, Tel Aviv e suas redes de apoio no Brasil vêm disputando a narrativa pública com base em um enquadramento preciso: criticar Israel seria ignorar ou minimizar os crimes do Hamas, distorcer o conceito de genocídio e, em alguns casos, praticar antissemitismo disfarçado. Essa gramática tem pontos de contato diretos com o discurso adotado por Washington para justificar sanções e tarifas contra o Brasil, rotulando decisões do Supremo Tribunal Federal e medidas do Executivo como “abusos de direitos humanos” e “censura à liberdade de expressão”. Nos dois casos, trata-se de invalidar moralmente a posição brasileira perante o público interno e a opinião internacional.


O segundo mecanismo é coalicional. A ponte entre o campo trumpista nos EUA, o bolsonarismo no Brasil e o governo Netanyahu não é nova: foi construída nos anos Bolsonaro, cimentada em eventos como CPACs internacionais, encontros parlamentares e agendas conjuntas com líderes evangélicos. Essa rede transnacional compartilha causas — defesa incondicional de Israel, combate ao “globalismo”, oposição a políticas progressistas — e se apoia mutuamente em momentos de crise. Quando Trump retorna ao poder e decide agir contra o Brasil, encontra nesse ecossistema um campo de atores já mobilizados, com discurso afinado e capacidade de amplificar a pressão sobre o governo Lula.


O terceiro mecanismo é tecno-material. A presença de Israel em setores críticos da defesa e da segurança pública no Brasil, incluindo contratos de longo prazo e fornecimento de tecnologias sensíveis, cria uma interdependência estrutural. Essa interdependência é, ao mesmo tempo, um ativo e um ponto de vulnerabilidade: por um lado, garante que a relação não possa ser rompida de forma abrupta; por outro, torna qualquer controvérsia envolvendo tecnologia israelense — como o caso FirstMile — uma arma política de alto impacto. É significativo que o ministro Alexandre de Moraes, hoje alvo direto das sanções americanas, tenha sido também um dos alvos de espionagem com tecnologia israelense sob o governo Bolsonaro. Ainda que as conexões não sejam coordenadas, a sobreposição de casos reforça narrativas de ingerência externa e fragilidade institucional.


Esses três mecanismos operam de forma complementar. O enquadramento discursivo ajuda a legitimar medidas coercitivas; a rede coalicional garante capilaridade e volume político; e a infraestrutura tecnológica cria vínculos que tornam o país mais permeável a pressões. O resultado é que, mesmo sem um comando direto de Tel Aviv para Washington, há uma ressonância estratégica: Israel, ao defender seus interesses frente ao Brasil, mobiliza vetores que também servem à agenda americana de enfraquecer o governo Lula.


Essa convergência não significa que os objetivos sejam idênticos. Para Netanyahu, o foco é conter o impacto internacional das acusações de genocídio e preservar capital político em fóruns multilaterais. Para Trump, o objetivo é desestabilizar um governo que se recusa a se alinhar aos interesses estratégicos dos EUA e que se aproxima cada vez mais do eixo China–Rússia–BRICS. Mas o efeito prático, no Brasil, é uma pressão mais intensa e multifacetada, que combina sanções, tarifação, isolamento diplomático e cerco narrativo interno.


No momento em que essa ponte está mais ativa, o governo Lula enfrenta simultaneamente um cerco econômico de Washington, uma ofensiva diplomática de Tel Aviv e uma guerra cultural interna alimentada por redes alinhadas a ambos. É um ambiente no qual qualquer movimento brasileiro em defesa de sua soberania precisa lidar não apenas com a força direta de cada adversário, mas com a sinergia entre eles.

Estudos de caso nominados



No coração do contencioso institucional está o escândalo da “ABIN paralela”. A Polícia Federal concluiu que o sistema FirstMile, da israelense Cognyte, foi adquirido e usado para dezenas de milhares de consultas ilegais de geolocalização, sem ordem judicial, atingindo jornalistas, opositores e autoridades — entre elas o ministro Alexandre de Moraes. O relatório final detalha a cadeia de compras, a operação do software e a massa de acessos; decisões do Supremo Tribunal Federal retiraram o sigilo de trechos e a própria Polícia Federal comunicou oficialmente a conclusão do inquérito. A cifra do contrato, de cerca de R$ 5,7 milhões, e o período de uso no governo Bolsonaro estão documentados. Este é um caso paradigmático porque instala tecnologia israelense no epicentro da crise brasileira com Washington: o mesmo ministro alvo da ofensiva sancionatória dos Estados Unidos foi, antes, alvo de vigilância abusiva operada com ferramenta de origem israelense. A conexão não prova comando externo, mas dá materialidade à tese de que a soberania informacional brasileira está em disputa.


No plano industrial-militar, a influência é de baixa visibilidade pública e alto efeito estratégico. A AEL Sistemas, controlada pela Elbit Systems, e a Ares Aeroespacial instalaram, ao longo de anos, um ecossistema de aviônicos, torres remotamente controladas e integração de armamentos em programas estruturantes do Exército, como o blindado Guarani, com módulos UT30BR e REMAX. Há contratos, marcos de produção e treinamento públicos, inclusive nos próprios registros do Exército. Esse “lastro fabril” cria dependências de manutenção, suprimento e atualização que sobrevivem a mudanças de governo e elevam o custo político de qualquer rompimento abrupto, sobretudo quando a política externa, como no caso Gaza e Haia, começa a contaminar decisões de aquisição. Em termos de risco, é uma alavanca estrutural: pequena no PIB, mas enorme na resiliência de cadeias críticas.


A presença israelense também se fixa no aparato de investigação e perícia. A suíte UFED da Cellebrite aparece em contratos e renovações com a Polícia Federal e secretarias estaduais; a própria empresa divulga casos de uso no Brasil, enquanto registros oficiais confirmam os empenhos. Este vetor é ambivalente: ferramentas forenses podem ser decisivas contra crime organizado e corrupção, mas, sem governança rigorosa e trilhas de auditoria, deslocam a fronteira entre segurança pública e vigilância estatal. Na atual temperatura política, qualquer episódio de abuso real ou alegado contamina o debate público e reforça a narrativa de dependência tecnológica sensível.


No campo diplomático-normativo, o Brasil ingressou no processo de genocídio contra Israel na Corte Internacional de Justiça em 23 de julho de 2025, com nota oficial do Itamaraty. Tel Aviv respondeu classificando a decisão como falha moral e equívoco histórico. O efeito foi imediato: entidades pró-Israel no Brasil intensificaram críticas, qualificando como falsa a tese de genocídio e acusando o governo de distorcer fatos e estimular antissemitismo. Esse ciclo — decisão de Estado, reprimenda israelense, contrarreação comunitária — fornece a moldura discursiva que ressoa nos Estados Unidos quando a administração Trump justifica sanções e tarifaço sob a linguagem de direitos humanos e liberdade de expressão.


A engrenagem ganha capilaridade na base socio-religiosa, onde o sionismo cristão atua como amplificador. Em 19 de junho de 2025, a Marcha para Jesus em São Paulo, evento de massa com forte presença de autoridades políticas, foi marcada por uma estética abertamente pró-Israel — bandeiras, orações “em socorro a Israel”, falas no palco — capturada por múltiplos registros jornalísticos. Não se trata de um gesto isolado, mas de um repertório recorrente, no qual símbolos religiosos e geopolítica se entrelaçam para forjar identidade política e criar custos reputacionais para autoridades que contrariem a linha pró-Israel. Essa base fornece volume às reações institucionais e ajuda a estabilizar uma coalizão que liga parlamentares, lideranças evangélicas, entidades comunitárias e atores transnacionais.


Por fim, a sincronização com o eixo Washington aparece quando se coloca lado a lado a cronologia brasileira no caso Gaza e Haia e a sequência de medidas americanas em julho de 2025: sanções sob a Lei Magnitsky contra Alexandre de Moraes, revogação de vistos e tarifa de 50% sobre produtos brasileiros. Embora formalmente ancoradas em fundamentos distintos — abusos de direitos humanos e censura no caso dos Estados Unidos, e genocídio e Haia no caso de Israel —, as duas frentes compartilham gramática e público-alvo: deslegitimar, perante plateias domésticas e internacionais, a política externa e institucional do governo brasileiro. Nas ciências políticas, esse tipo de sincronia é descrito como ressonância estratégica entre coalizões com interseções materiais e simbólicas.

Contrapontos, pluralidade e direito de resposta



Nenhuma análise de alto nível sobre um tema tão sensível pode prescindir de contrapontos e da apresentação de visões divergentes, sobretudo quando envolve Estados soberanos, atores políticos e entidades civis. Esse equilíbrio é não apenas uma salvaguarda jurídica, mas também uma exigência do jornalismo estratégico sério, que precisa apresentar ao leitor a pluralidade de vozes e contextos antes de chegar a uma conclusão.


No caso da crise Brasil–EUA e do papel de Israel, há setores e atores que discordam frontalmente da interpretação de que a atuação israelense no país ou suas redes de apoio influenciam a atual pressão americana. Representantes de entidades comunitárias judaicas e pró-Israel já afirmaram publicamente que sua ação é pautada exclusivamente pela defesa de Israel e pela manutenção de relações históricas entre os dois países, negando qualquer coordenação com Washington ou interferência na política interna brasileira.


Lideranças do campo evangélico, alinhadas ao sionismo cristão, sustentam que seu engajamento com a causa israelense é motivado por convicção religiosa e não por cálculo político-partidário. Para elas, a defesa de Israel é parte de um dever espiritual e teológico, desvinculado de articulações geopolíticas.


No plano governamental, autoridades israelenses reiteram que o Brasil continua sendo visto como um parceiro importante e que divergências pontuais, como a posição sobre Gaza e o processo na Corte Internacional de Justiça, não apagam a história de cooperação em defesa, agricultura, ciência e tecnologia. Da mesma forma, diplomatas brasileiros já registraram que a relação bilateral, embora tensa, não foi formalmente rompida, mantendo-se canais de diálogo abertos.


Há também organizações judaicas progressistas no Brasil e no exterior que, embora critiquem a política de Netanyahu, rejeitam qualquer associação entre crítica legítima a Israel e antissemitismo. Essas vozes, por vezes invisibilizadas no debate público, oferecem uma visão alternativa sobre como sustentar o diálogo Brasil–Israel sem abandonar princípios de direitos humanos ou comprometer a autonomia da política externa brasileira.


Do ponto de vista norte-americano, representantes ligados ao Departamento de Estado e ao Congresso afirmam que as medidas contra o Brasil têm relação direta com preocupações sobre a condução do Judiciário e não com a política externa do país em relação a Israel. Embora essa narrativa seja contestada por analistas que identificam a sobreposição de agendas, ela representa uma posição oficial que precisa ser registrada.


Ao apresentar esses contrapontos, o objetivo não é diluir a análise, mas reforçar sua credibilidade. Reconhecer a existência de visões divergentes é parte do rigor jornalístico: ajuda o leitor a entender que, mesmo quando se identificam conexões e ressonâncias, não se está assumindo como verdade absoluta uma leitura única. A força do argumento central se sustenta justamente porque é capaz de resistir ao confronto com perspectivas distintas.

Conclusão e Cenários Preditivos



A análise do papel de Israel na crise entre Brasil e Estados Unidos revela que não se trata de um elemento periférico ou meramente circunstancial. Sob o governo Netanyahu, Israel atua de forma consistente em três frentes interligadas: disputa normativa em fóruns internacionais e na opinião pública, presença estratégica em setores de defesa e segurança de alto valor crítico e articulação com redes políticas e comunitárias que ampliam seu alcance e sua capacidade de pressão. No Brasil, essas frentes não operam isoladamente: convergem e se reforçam em momentos de tensão diplomática, como no caso Gaza/Haia, e encontram pontos de contato com narrativas e medidas adotadas por Washington.


Essa convergência não implica um comando direto ou coordenação formal entre Tel Aviv e Washington. O que se observa é uma ressonância estrutural: os enquadramentos discursivos usados por atores pró-Israel no Brasil e pelo governo Netanyahu dialogam com a linguagem e os objetivos de setores da política americana, especialmente do trumpismo, no momento em que os Estados Unidos decidem sancionar autoridades brasileiras e impor barreiras econômicas ao país. É uma sinergia de agendas que, mesmo partindo de motivações distintas, produz efeitos cumulativos sobre o governo Lula.


Do ponto de vista estratégico, isso cria para o Brasil um cenário de pressão multifacetada. No eixo diplomático, há o risco de isolamento em fóruns multilaterais, caso a narrativa israelense sobre Gaza se sobreponha e encontre eco nas alianças americanas e europeias. No eixo econômico e tecnológico, a dependência de sistemas e serviços fornecidos por empresas israelenses em áreas críticas, como defesa e perícia forense, torna vulnerável qualquer tentativa de realinhamento abrupto. No eixo cultural e político interno, a força do sionismo cristão e a atuação de entidades pró-Israel garantem que qualquer divergência com Tel Aviv tenha repercussão imediata na esfera pública e no Congresso.


Os cenários preditivos para 2025 e 2026 apontam para três possíveis trajetórias. No cenário de escalada, o Brasil mantém sua postura firme no caso Gaza/Haia e amplia sua aproximação com o BRICS, levando a novos embates retóricos e eventuais represálias comerciais ou diplomáticas, tanto de Israel quanto dos Estados Unidos. No cenário de acomodação tática, Brasília preserva suas posições em fóruns internacionais, mas busca minimizar choques bilaterais, mantendo acordos de defesa e tecnologia enquanto administra a tensão política interna. No cenário de distensão, improvável a curto prazo, mudanças no governo israelense ou uma recomposição da política americana abririam espaço para reaproximação diplomática e renegociação de entendimentos estratégicos.


Independentemente do cenário, a chave para o Brasil é reconhecer que, na crise com os Estados Unidos, Israel não é um ator externo irrelevante, mas parte de uma rede de influência que opera em múltiplas camadas, do discurso aos contratos. Qualquer estratégia de proteção da soberania nacional, seja ela informacional, tecnológica ou diplomática, precisa levar em conta essa presença e sua capacidade de moldar tanto o ambiente interno quanto a percepção externa do país.


O caso atual demonstra que, no tabuleiro geopolítico, a pressão raramente vem de uma única direção. O que o Brasil enfrenta hoje é o produto de múltiplos vetores que se encontram e se reforçam. Reconhecer essa realidade, mapeá-la com precisão e agir de forma coordenada é o único caminho para que o país mantenha sua autonomia e evite ser constrangido por sinergias de poder que não controla.

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